O orixá mais humano e, talvez, o mais mal compreendido na cultura dos orixás é Exu. Entre o divino e o humano, o consciente e o inconsciente, ele é o mestre dos caminhos, da comunicação e da transformação. Mas, nas tradições judaico-cristãs, enfrenta a contradição de ser comparado tanto ao benevolente Santo Antônio quanto ao próprio satanás. Exu escreve certo por linhas tortas e atua no caos para que a ordem prevaleça.
O que este artigo responde: Quem é Exu no panteão africano? Por que Exu é mal interpretado nas tradições judaico-cristãs? Qual é o significado do saudação “Laroiê, Exu!”? Como Exu influencia a vida e as decisões humanas? Qual é o papel de Exu nas cerimônias e práticas religiosas? O que Jesus e Exu têm em comum? Exu é Jesus? Quem é Jesus no culto dos orixás?Quem é Exu nas religiões judaico-cristãs? Qual o significado dos símbolos de Exu? O que Exu pode fazer na vida de uma pessoa? Qual a importância de Exu? Exu é bom ou mal?
Laroiê, Exu!
Este é o “salve”, a saudação que se faz ao mais humano dos orixás, a primeira forma dotada de existência individual, a figura mais importante da cultura iorubá.
A palavra Èșù em iorubá significa “esfera” – aquilo que é infinito, que não tem começo nem fim. Exu é o orixá do movimento inicial e dinâmico que leva à propulsão, ao crescimento e à multiplicação. É o senhor dos princípios, da transformação, muitas vezes da angústia mas, principalmente, da comunicação.
Ativador de nossos merecimentos, propicia nossas vitórias e nossas derrotas, pois nem sempre sabemos lidar com a vaidade, o ego, o egoísmo e a soberba.
Exu abre caminhos, mas também fecha, acorrenta nossa vida, quando nos encontramos desequilibrados e viciados. Por isso é senhor das encruzilhadas, da entrada e da saída, das possibilidades, do “e” no lugar do “ou”.
Ele é a força que atua sobre o negativo de qualquer pessoa para equilibrar essa ação. É aquele que faz o erro virar acerto. É aquele que escreve certo em linhas tortas, escreve torto em linhas retas e escreve torto em linhas tortas. Atua no caos para que a ordem prevaleça. Não gosta de displicência e de injustiça.
Exu é o orixá que entende como ninguém o princípio da reciprocidade.
Exu é também o guardião do mercado, do comércio. Faz a guarda e distribui bençãos de fartura, prosperidade e boa sorte nos negócios. As vendedoras de acarajé, por exemplo, oferecem sempre o primeiro bolinho a Exu, atirando-o à rua, não só para vender bem, mas também para afastar as perturbações, os assaltos…
Pioneiro
Exu é a primeira forma dotada de existência individual. Não se sabe ao certo a sua região de origem em África – em todos os reinos se presta culto a Exu. É de conhecimento – conta o site O Candomblé – , que ele chegou a ser rei da nação Kêtu, que gerou as linhagens dos obás dos iorubás (reis considerados descendentes diretos do orixá cultuado, que representam ou “são” o próprio orixá em vida).
Ele é a figura mais importante da cultura iorubá – só através de Exu se chega aos demais orixás e ao Deus Supremo Olodumaré. E, também, a mais controversa do panteão africano, o mais humano dos orixás.
“Deus da terra e do universo, Exu é a ordem, aquele que se multiplica e se transforma na unidade elementar da existência humana. Exu é o ego de cada ser, o grande companheiro do homem no seu dia-a-dia”, escreve O Candomblé.
Na realidade, Exu contém em si todas as contradições e conflitos inerentes ao ser humano, capaz de amar e odiar, unir e separar, promover a paz e a guerra.
Entre Deus e o diabo
Aliás, muitas são as confusões e equívocos relacionados a este orixá. O pior deles associa-o à figura do diabo cristão, um deus voltado para a maldade, que se ocuparia em semear a discórdia entre os seres humanos.
Só que no culto aos orixás não existe diabo. O culto aos orixás não se pauta pela repressão, mas pela busca do homem pelos seus próprios limites.
“Diferentemente do que muitas pessoas acreditam, Exu é a energia vital, que nos move e nos transforma”, ensina a ialorixá Nívea Luz, do Instituto Oyá, um centro de arte, cultura e lazer, onde também fica o Ilê Axé Oyá, na Bahia.
“No candomblé não existe essa ideia de energia contrária, de polarização entre o bem e o mal. É tudo muito simples e puro – afirma Nívea. É a relação do homem com a natureza. Os orixás são elementos da natureza – planta, água, ar.”
O maniqueísmo é próprio das grandes religiões monoteístas, não se aplica ao Candomblé, muito menos a Exu. O bem de um pode perfeitamente ser o mal de outro, portanto, cada um deve dar o melhor de si para obter tudo de bom na sua vida.
A ialorixá lembra que, para além dos homens, mulheres, crianças, os navios negreiros transportaram da África os orixás, e, ao longo dos séculos, a Igreja forja tal distorção, que alimenta a intolerância e o racismo religioso.
O que as religiões judaico-cristãs chamam de pecado é compreendido como “falta de medida”, que gera consequências, uma vez que existe uma medida certa para todas as coisas – só os seres humanos ultrapassam, têm problemas, com os limites.
Os missionários cristãos, também, ao perceberem o grande poder que Exu exercia entre os adeptos do candomblé, começaram a execrá-lo e transformá-lo em um ser maligno e perigoso.
Questão de olhar
Por que Exu virou diabo? Por conta de seu jeito irreverente, brincalhão e devido à sua representação no culto africano.
Exu aparece com o falo ereto, segurando um tridente. O estudioso Adelson de Brito, autor do livro e songbook Ògun: Ogun OniIre Alákoro, Gù Alágbede, em entrevista ao jornal baiano A Tarde, explica: o falo representa a “essência da natureza humana, a fecundidade, a geração da vida”, e no tridente estão os três elementos fundamentais para a existência: a água, o ar, a terra.
As três pontas guardam uma outra simbologia, assim como o número 3. Na “santíssima trindade iorubana”, como diz Adelson, há as energias da direita, as energias da esquerda e a da multiplicação. “Se a força da direita é igual à da esquerda, você não tem vida. Tem estagnação. Então, é preciso provocar um desequilíbrio para que a vida aconteça. E quem provoca esse desequilíbrio? Exu”.
Algumas imagens da divindade também têm chifres, especialmente as do vodun Legba, da nação jeje. Adelson diz que são sinal de virilidade e predisposição ao combate.
“É um aviso de que o adversário não terá vida fácil”.
A trança do topo da cabeça ao final da coluna, ligando o superior ao inferior; a barriga de grávida, os seios e o falo tocando a terra, contam, ainda, de seu estar no masculino e no feminino, destaca o professor Rangel Fabrete, no curso Mitologia Afro Brasileira e Psicanálise, do Instituto Freedom.
E o psicanalista chama atenção, ainda, para outras características presentes em representações icônicas do orixá, como a mão, segura uma cabeça, que traz a contradição em si mesmo.
“Exu não se esquadra. Tem coisas que a gente tem de aceitar. São como são. A gente é que tem que se transformar”.
Movimento inicial
O antropólogo Vagner Gonçalves, autor do livro Exu, o Guardião da Casa do Futuro, escreve que a associação da entidade com o demônio, começa ainda na África, como está documentado em relatos de missionários e comerciantes.
Eles associam Exu à ordem e à desordem do mundo, que é o lugar do diabo na tradição judaico-cristã. E o antropólogo propõe um olhar mais aprofundado para esta contradição:
“O bem resulta do mal. Só se pode enfatizar o bem a partir da relação que ele tem com o mal. O próprio diabo era um anjo, que foi expulso do paraíso. Mas nos sistemas africanos, como o iorubá e o fon, não existe uma relação de dicotomia. As entidades têm mais ou menos a mesma importância. Cada um domina um elemento da natureza. E o que Exu faz nesse sistema? Ele é aquele que, não tendo um domínio próprio, tem todos os domínios”.
Adelson de Brito comenta, ainda, como se dá está ligação direta de Exu com os seres humanos, a partir do provérbio que diz:
“Exu atirou hoje e matou uma coruja ontem.”
“É o começo, o meio e o fim” – interpreta o escritor. “Para Exu, você arca com o que faz, colhe o que planta. Exu é a palavra dura da lei” – isso também se re-aprende nas epístolas de Paulo (Coríntios II) séculos depois, que fala da semeadura livre e da colheita obrigatória.
Adelson diz que Exu não contribui para o mal de ninguém, mas sabe que todas as experiências, por serem humanas, são válidas. “Para Exu, você arca com o que faz”.
Jesus cubano
Com o demônio cristão, existe o mal absoluto. Por isso, nem com o sincretismo, é possível comparar os dois. E é assim que ao mesmo tempo que Exu é considerado demônio, pode ser Jesus:
“Na santeria cubana, Exu é associado com o menino Jesus” – conta o antropólogo Vagner Gonçalves. “Por que isso? Porque Exu é o ser da mediação. Jesus diz: ‘Ninguém chega ao pai senão por mim’. E Exu fala: ‘Ninguém chega aos orixás senão por mim’”.
O princípio é o mesmo. Só que Exu vem primeiro, da mesma forma que Deus vem antes e não é cristão, como sempre nos lembra Paulina Chiziane.
Exu é o “mensageiro” entre o mundo em que os seres humanos rogam e o outro, em que os deuses acodem, fala todas as línguas, recebe e leva os pedidos e as oferendas dos seres humanos ao Orum, o céu.
Como mediador, atua no fluxo de energia divino, o superior e o inferior, o quente e o frio, o masculino e o feminino, o dia e a noite, o positivo e o negativo, desce e sobe transformando.
Por conta de seu olhar ampliado, derruba o dualismo, a limitação. Propõe o diálogo entre os opostos, a integração. A consciência tem a tendência de ser unilateral, reducionista, dualista, esquece que entre o sim e o não existe o talvez. Nada é unilateral – a visão restrita gera a desgraça. Com Exu, não existe espaço para a intolerância.
Sacro ofício
A tradição diz que tudo começa por Exu, com um sacrifício a Exu, um trabalho sagrado. Isso porque ele abre e fecha os caminhos, traz o novo, as possibilidades. E é muito importante como condutor da alma, porque quebra a lógica, o “piloto automático”. A encruzilhada de Exu é o ponto da ampliação da consciência.
Para lidar com a dinâmica da Exu existem regras: ele é sempre o primeiro a ser louvado nas casas de umbanda e candomblé, o primeiro a comer, o primeiro que recebe o sacrifício (= sacro ofício).
“O sacrifício é um arquétipo”, ensina o psicanalista Rangel Fabrete, no curso Mitologia Afro Brasileira e Psicanálise. “É no ego que estão nossas crenças, cristalizações, nossa zona de conforto, nossas verdades, pontos de vista… Quando sacrificamos o ego, abrimos espaço para o inconsciente manifestar-se”.
Exu ensina que sempre temos de abrir mão de algo para poder seguir nosso caminho, iniciar um novo projeto, casar, fazer qualquer mudança… “Sacrificar-se é abrir mão de algo que se gosta”, define Fabrete. “Pode ser um ponto de vista, muitas vezes temos um ponto de vista unilateral, enviesado, engessado; uma verdade, um vício, crenças… E Exu traz a provocação: “sacrificar”. Quando as coisas travam, é porque a gente não sacrificou, não abriu mão”.
Aspectos básicos
Seu dia da semana é a segunda-feira. Sua data de celebração é a mesma de Santo Antônio, da Igreja Católica, 13 de junho. O símbolo é o Ogó, um bastão adornado com cabaças e búzios. Os colares e roupas têm as suas cores, vermelho e preto. Os elementos são a Terra e Fogo.
Laroiê, Exu!
Fontes: O Candomblé, Instituto Freedom – Curso Mitologia Africana e Psicanálise; livro “Águas de Aruanda”, Organização de Fábio Dantas; livro “Um defeito de cor”, Ana Maria Gonçalves; A tarde; Raízes Espirituais; Wikipédia
Escrito em 1 de junho de 2022
obrigada por esse texto
Laroyê Exus são mojubás! Gratidão por este maravilhoso trabalho! Saravá
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Texto bem detalhado e completo.
Uma pergunta: sou um cristão conservador que respeita a fé de cada religião e
culto; mas desejaria saber o porque dos orixás só apoiarem os esquerdistas que defendem
a opressão comunista!
Nenhum orixá avalia bem um conservador?
Julimar, os orixás não têm cor partidária, as pessoas têm cor partidária, pré-conceitos que não sobrevivem a uma pesquisa histórica. O problema não é a religiosidade, mas o como a utilizamos.
Obrigada Tânia pela excelente explanação e pesquisa!!!
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Muito bom texto
Laroiê Exu.
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Sempre tive interesse em conhecer mais e o texto ajudou bastante. Obrigado pelas explicações!!! Continue sempre.
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