Descolonizar o pensamento, filosofia de resistência, alienação e liberdade definem este psiquiatra, precursor dos impactos do colonialismo europeu na desumanização dos povos e na análise da psique do homem negro.
“Todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo. Sendo ideal que o presente sempre sirva para construir o futuro. E esse futuro não é cósmico, é o do meu século, do meu país, da minha existência.”
(Frantz Fanon, no livro Pele Negra, Máscaras Brancas)
Escrito de outra forma: transformar a sociedade só será possível a partir do confronto de quem somos e de quem são os colonizadores e do olhar para o efeito da ação dos “poderosos” sobre os que são colocados em condição de subalternidade e aos quais é negada a existência sem violência.
Frantz Omar Fanon, psiquiatra, filósofo, político, viveu apenas 36 anos e, aos 27, em pleno 1952, assumia o pioneirismo em estudos decoloniais – que podem ser entendidos como a busca pelo direito à diferença e abertura para o pensamento do outro -, a partir de uma perspectiva do homem negro, do colonizado.
Mas não é assim que sua história começa…
Franz Fanon nasce em 20 de julho de 1925 em Fort-de-France, capital da ilha caribenha da Martinica e, aos 15 anos, praticamente no início da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), vê cerca de cinco mil marinheiros brancos buscarem refúgio na sua terra natal. Na época, uma colônia francesa.
Esta invasão muda a sua vida para sempre. Até então, Fanon se considerava francês, como todo martiniquenho. Mas os marinheiros viram a sua pele preta e conscientizaram, através da segregação racial, de que era, antes de tudo, negro.
Segregação
Saber descortina percepções. Desconforto gera crescimento. E com Fanon não é diferente. Uma vez “revelada” a sua negritude, a questão da racialização torna-se explícita aos seus olhos.
Em meio à guerra, lado a lado com seus pares, lutando por um mundo sem os horrores da supremacia branca, do nazismo, ele sente a segregação manifestando-se nos corpos de seus irmãos de cor.
Sim. Aos 18 anos, Fanon alista-se no Exército Francês, luta contra a invasão alemã. E, como soldado, constata o racismo de seus colegas de farda, de pátria, de luta. Tanto os marinheiros, que invadiram a sua cidade, como os franceses na guerra, reservavam tratamento desumano aos habitantes de colônias francesas na África do Norte.
Desumanidade
Desta vivência de guerra, surgem as cicatrizes que traçam o caminho de sua trajetória profissional, de ser político, pensante.
Cicatrizes que transformam o jovem Fanon em psiquiatra essencial na abordagem dos impactos do racismo e do processo de colonização na saúde mental da população negra e de outros povos colonizados.
“O negro não é um homem, é um homem negro.”
Esta era uma das afirmações provocativas de Fanon em seu diagnóstico da nossa sociedade, colonial por excelência.
Qual o sentido desta negação do próprio existir?
As contradições sociais, racializadas, em que o homem negro está imerso desde sempre e que o impedem de reconhecer-se e ser plenamente reconhecido como humano.
Para Fanon, quando se pensa em ser humano, o negro não está incluído.
O racismo estrutural é pródigo em estratégias de desqualificação.
Os negros, escravizados, foram naturalizados como instrumentos a serviço da sociedade humana. A Igreja Católica – na construção deste olhar do velho mundo para a nossa existência – declarou os negros sem alma, uma comprovação (?!) a mais da nossa não humanidade!
A palavra “homem” sempre foi utilizada como sinônimo de humanidade, de “ser humano”. Homem é todo ser humano. Negro é negro. Negro não é homem. Logo, negro não é humano… Isso explica muito da insistência de o povo preto ser sempre identificado pela cor.
Parênteses: essa ideia é construída. A palavra “homem”, de origem indo-europeia, remete a “homo” (humano), mas também a “humus” (chão ou terra), em contraposição a deuses, homens, como o próprio Deus…
Fanon, nos anos 50 do século passado, já fazia esta denúncia – aí também o seu pioneirismo.
Masculinidades
o Quais as chances, na escravidão, de um homem negro reagir à violência sexual impingida à sua companheira conjugal?
o Como homens negros desempenhariam papéis patriarcais, de provedores, quando saíram da escravidão para a marginalidade, sem direito a nada?
o Até que ponto se pode falar em “privilégio masculino negro” quando o homem negro está abaixo até mesmo das mulheres negras no quesito mortalidade, encarceramento e violência urbana?
Ao escrever sobre masculinidades negras na Revista Cult, o sociólogo Deivilson Faustino, referência no estudo da obra de Frantz Fanon, lança estas questões, e propõe uma reflexão:
“É possível que, em determinados momentos, homens negros gozem de quase todas as dores e delícias de qualquer homem em uma sociedade patriarcal, interiorizando, re-produzindo e externalizando determinados padrões hegemônicos de masculinidades. No entanto e, ao mesmo tempo, o racismo destina a esses homens um lugar muito particular – para não dizer, ambíguo – na divisão sexo-racial do trabalho na sociedade moderna, limitando quase sempre as possibilidades de corresponder plenamente a esses padrões”.
E é disso que trata Fanon na abordagem das masculinidades negras. Não para isentar de responsabilidade, mas para perceber o legado e a permanência do colonialismo em nós, como ponto de partida para a libertação.
Entendendo que a libertação deve ser conquistada, a partir do protagonismo do colonizado, Fanon promove a ocupação de seu lugar de fala e de existência. No seu tempo, foi o único na abordagem do tema. Mas, como homem negro, teve seus estudos deliberadamente descartados por anos.
Máscara branca
O psiquiatra se forma no ano de 1951, na Faculté Mixte de Médicine et de Pharmacie da Université de Lyon, na região da França Metropolitana.
Sua carreira universitária inclui envolvimento com o movimento estudantil, militância negra na direção de peças de teatro abordando a questão racial e confronto com as convenções acadêmicas da época que quase o impediram de graduar-se.
Sua tese Ensaio sobre a desalienação do negro, sobre os impactos psíquicos na população negra em virtude do processo de colonização, foi rejeitada pela banca examinadora.
Mesmo frustrado, Fanon insiste. Em duas semanas, apresenta outra tese: Transtornos Mentais e Síndromes Psiquiátricas em Degeneração Espino-cerebelar-hereditária: Um Caso de Doença de Friedereich com Delírio de Possessão e é aprovado com sucesso.
Questão de pele
Sua tese, a primeira, rejeitada pela banca, não se perde. Ao contrário – se perpetua no livro Pele Negra, Máscaras Brancas, considerado um dos textos mais influentes dos movimentos de luta antirracista desde sua publicação em 1952.
É nela que o autor propõe – como motivação explícita de seu trabalho – desalienar mentes negras do complexo de inferioridade, que a sociedade branca lhes incute desde a infância.
Para ele, não se compreende a questão negra fora da relação com o branco:
“… a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor, epidermização dessa inferioridade“.
O sociólogo Deivison Faustino explica o conceito de “alienação psíquica”, de acordo com a visão de Fanon:
“Alienação não se resume a uma falta de conhecimento sobre algo ou sobre si, mas a uma perda da capacidade – implicada em situações sociais concretas – de se autodeterminar como indivíduo ou grupo social”.
Superar a alienação colonial, descolonizar a mente e tomar consciência de si são as contribuições de Fanon para que os povos vítimas da colonização – incluindo o homem negro – se vejam como sujeitos de sua própria história, compreendam que são alvos de opressões e que estão inseridos na lógica de oprimirem também.
O entrelaçamento do racismo com o machismo transforma o homem negro em algoz de si e da mulher negra.
Torturadores e torturados
Como psiquiatra, também, Fanon defendia um tratamento que contemplasse as diferenças humanas. Ele acreditava não ser possível compreender o sofrimento psíquico sem olhar para a sociedade.
Nos hospitais psiquiátricos onde trabalhou, incluindo o Le Médicat des Hôpitaux Psychiatriques, um dos mais renomados de Paris, ele chega a desenvolver este modo de olhar. Mas sua maior vivência profissional acontece no hospital psiquiátrico de Blida, na Argélia, atende combatentes dos dois lados da guerra.
De um lado torturadores franceses, que adoeciam por causa do ofício e, de maneira clandestina, argelinos torturados. Todos com transtornos mentais, devido aos conflitos coloniais travados na luta por independência ou manutenção de controle, dependendo do olhar do paciente.
O tratamento, para franceses e argelinos, era camisa-de-força e isolamento. A diferença estava nas alas que reproduziam a segregação do colonialismo.
Cura com liberdade
Fanon decide – mesmo a contragosto de muitos – reformular as atividades socioterapêuticas e as relações.
Primeiro, determina o fim da distinção entre o europeu e o indígena – como eram pejorativamente chamados os mulçumanos e berberes, vítimas da colonização – e introduz a separação a partir do grau de sofrimento psíquico.
Os pacientes passam a ter liberdade para ir e vir dentro do hospital e as camisas-de-força são utilizadas só em último caso.
Esta revolução nos manicômios que atravessa fronteiras e se torna referência para muitos dos estudos psiquiátricos envolvendo a relação entre cultura, subjetividade e sofrimento psíquico.
Cinema, jornal e música são entendidas também como atividades terapêuticas. Isso porque Fanon acredita na eficácia terapêutica da socioterapia, que permite a vivência cultural dos pacientes.
Vanguarda
Na Europa do pós-guerra, suas ideias estão na base do movimento de reforma psiquiátrica, como a criação do hospital-dia, que inclui o retorno do paciente para casa à noite, e da luta contra os manicômios, com suas camisas-de-força e isolamento forçado.
Fanon é vanguarda da luta antimanicomial e reforma psiquiátrica. Suas produções teóricas e práticas inspiram outros psiquiatras, mas não são mencionadas em produções acadêmicas de outros autores. Ele – que inspirou o psiquiatra italiano Franco Basaglia, principal figura no estudo da reforma psiquiátrica – não é celebrado.
O não existir intelectualmente, pré-conceituado sobre o povo negro, também se escancara quando se olha para a história e a profundidade da obra de Frantz Fanon.
Ativista
Intelectual orgânico, Fanon prestou serviço como médico na Frente de Libertação Nacional da Argélia. É autor de O Quinto Ano da Revolução Argelina, mais conhecido como A Sociologia da Revolução, onde descreve o processo de mobilização social em curso naquele país.
No livro Os Condenados da Terra, sua última obra – escrita quando soube que tinha pouco tempo de vida -, Fanon reflete sobre seu engajamento na guerra pela independência da Argélia e aprofunda seu pensamento anticolonial e crítico ao imperialismo.
A França o censurou quanto pode – sob o estigma de terrorista -, mas segue perdendo esta empreitada. Sua obra está traduzida em diversos idiomas.
No Brasil, seus livros chegaram a partir de 1968. Primeiro, Os Condenados da Terra. Depois, em1983, Pele Negra, Máscaras Brancas, a partir de articulação dos movimentos negros organizados.
Frantz Fanon morre em 6 de dezembro de 1961, aos 36 anos, nos Estados Unidos, de leucemia – a pedido da Frente de Libertação Nacional, está enterrado na Argélia, que conquistou sua independência em 1962.
Conheça também Abdias do Nascimento, um intelectual negro, um revolucionário na política e na arte!
Escrito em 24 de maio de 2021
Pingback: O que queremos • Primeiros Negros
Pingback: Intolerância Religiosa, o ódio semeado em nome de Deus
Pingback: Cheikh Anta Diop, protagonismo negro na história do mundo