O negro e a independência do Brasil
- Tania Regina Pinto
Quadro de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) retratando o interior de um navio negreiro. (Imagem: Wikimedia Commons)
Nada a celebrar. Nós éramos o alvo!
Quando o povo preto se pergunta:
Qual a diferença entre o 7 de setembro de 1822 e o 7 de setembro de 2022?
No ano da independência do Brasil – país que não foi descoberto, mas invadido e saqueado pelos portugueses -, de cada três brasileiros (???), dois eram negros, índios ou mestiços, escravizados ou forros. Difícil saber se eram de fato brasileiros, nascidos no território, ou se brancos portugueses e africanos.
O fato é que a maioria era pobre, carente de tudo, vivia à margem… O latifúndio e o tráfico negreiro dominavam a economia. Os ricos, poucos, com raras exceções, eram reconhecidos como ignorantes e temiam uma rebelião dos cativos, a maioria.
De cada dez pessoas, apenas uma sabia ler e escrever.
O rei Dom João VI havia raspado os cofres. O “novo país” nasce falido. Mantém, internamente, o regime de trabalho escravo e, externamente, se submete à dominação da Inglaterra. Uma “independência” feita pelos senhores de escravos para os senhores de escravos!
No poder, homens brancos escravocratas, deputados que representavam as capitanias brasileiras na Assembleia de Lisboa e, com a “independência”, os que formam a Assembleia do Rio de Janeiro.
Na América Latina, o Brasil é o único país a ficar independente mantendo a escravidão, numa trama que envolve escravocratas, comerciantes e a própria família real portuguesa.
Resumindo: nenhum debate em relação à manutenção ou não da escravidão. E a prova é a Constituição de 1824 que, se quer, toca no assunto. O Brasil, livre (?!), aposta no futuro da escravidão.
2022
Insegurança alimentar, miséria, genocídio negro e indígena, violência policial, democracia de compadrios, pessoas vivendo na rua, um povo que não se faz representar nem em raça nem em gênero.
O povo continua cativo. E os homens brancos continuam a dar as cartas. As relações de poder se mantêm as mesmas e a ideia de nação livre segue questionada quando temos, à frente do Poder Executivo, um político que deliberadamente, dia a dia, destrói o país.
E tudo em nome de Deus!
Somos o país mais religioso (?!) do planeta!
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200 anos de independência do Brasil. E daí?
De que valeu o grito do Ipiranga?
Não teremos nós que gritar agora, nas urnas, pra começar?
A independência do Brasil ainda não aconteceu.
Não existe Democracia sem o povo negro.
Não existe Independência do Brasil sem direitos para o povo negro.
Nada a celebrar.
Independência, Proclamação da República, Abolição da Escravatura são fake news da história do Brasil, que insistimos em divulgar nas redes de ensino, pública e privada! E, este ano, com a pompa e a circunstância que não reflete a vida de brasileiros e brasileiras.
Nos últimos quatro anos, assistimos o povo morrer no meio de uma pandemia por determinação do Poder Executivo e com o beneplácito do Poder Legislativo e da Procuradoria Geral da República. O Poder Judiciário fez alguma coisa, mas bem pouco diante das necessidades reais do povo.
O Brasil não triunfou. Nós não triunfamos. Nada a celebrar!
Resistimos, re-existimos, disfarçamos a dor e nos travestimos de zé-ninguém acreditando, ainda, que precisamos ser tutelados.
O povo preto fora da África é apátrida ou, se preferirmos, cidadãos do mundo. Somos da nação negra.
Vale saber mais sobre o pan africanismo de Marcus Garvey.
Não por acaso nos classificaram ao longo da história como cabritos, cabritas, mulatos, mulatas, morenos, morenas, pardos e pardas, entre outras expressões similares que nos colocam no nada, no não pertencimento.
Se pensarmos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística… Assim como, atualmente, a população LGBTQIAP+ luta para ser contemplada no censo demográfico em pleno século XXI, nós, população preta, tivemos de lutar. E, mesmo assim, nos dividiram em pretos e pardos!
Quantos serão os ruivos, os loiros e os, de fato, morenos no Brasil? Não existe esta pergunta. São todos brancos. Quanto a nós, invisíveis. Em luta permanente contra o racismo estrutural que nos coloca em confronto com nossos iguais.
Negra independência
A história do 7 de setembro de 1822 traz, nos bastidores, acontecimentos importantes relacionados ao movimento negro. Muito antes do grito de “Independência ou Morte” às margens do Ipiranga, a população negra africana escravizada no Brasil já lutava pela emancipação do país e pela sua própria liberdade.
Mas, como sempre, o protagonismo negro é camuflado, sabotado, silenciado, invisibilizado para dar lugar a uma construção histórica baseada em quem detinha o poder e não, de fato, em quem foi resistência.
Nunca é demais lembrar a história da princesinha que assinou a lei áurea.
O ideal de independência exaltado pela elite branca ignorou a maioria dos movimentos negros no Brasil colônia. Cercadas por preconceito, injustiças e descaso, muitas revoltas iniciadas pela população negra tiveram suas narrativas abafadas e consideradas menos importantes.
A Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, por exemplo, de 1798, teve a maior participação efetiva da população negra, livre e escravizada.
O medo da elite branca foi tão grande que a repressão incluiu o assassinato dos principais líderes mortos. A articulação popular, entre outras bandeiras, pedia o fim da monarquia e da da escravidão.
E cabe nos perguntarmos:
Se uma luta assim tivesse conseguido prosperar, a sociedade brasileira poderia ter-se organizado de outra forma, poderia ser melhor?
Escravizados – africanos, crioulos (negros nascidos no Brasil) e miscigenados – não testemunharam passivamente o drama da independência. Muitos acreditaram, inclusive, que lhes cabia um papel na política.
Leia o artigo sobre as rebeliões negras pela independência do Brasil.
Grito contido
Os negros gritaram a plenos pulmões, mas só Pedro II foi ouvido! É ilusão pensar que o rompimento com Portugal acontece a partir de um ato isolado. Houve um longo processo, conflituoso, até o 7 de setembro de 1822 e que se seguiu depois dele. Também porque a questão não era só a independência.
A elite, os intelectuais, a população pobre, os comerciantes e, principalmente, os negros escravizados, todos queriam mudanças, todos se levantaram contra o governo, o racismo, as injustiças, a crise econômica. Nada diferente do que vivemos hoje, o que inclui manifestações, debates, manobras legislativas, estratégias de conveniência…
O problema da branquitude era o tráfico negreiro que insistia em não acabar. O problema da branquitude era Portugal. Mas o Brasil fazia questão de manter a escravidão, sua principal fonte de riqueza.
Após a “independência”, a escravidão foi mantida e expandida – pelo menos meio milhão de africanos entraram no país, a maioria na ilegalidade, e o negro viveu mais 66 anos de escravização.
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Fontes: Sim a Igualdade Racial, BBC, Guia Negro, PSTU, Livro “1822”, de Laurentino Gomes – introdução
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