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Pautas Identitárias

por Primeiros Negros

Fotografia da série “Carnaval”, de Carlos Vergara, 1972

Somos muitas vozes, corpos, necessidades.

As demandas por visibilidade,  reconhecimento, equidade  e igualdade presentes nas lutas do povo preto em geral, de quilombolas, indígenas, LGBTQIAP+ e das mulheres são exemplos de pautas identitárias. 

O que estas pautas têm em comum?

Elas politizam questões do viver, do dia a dia, das relações do cotidiano, como liberdade de escolha, direitos sexuais e reprodutivos, opressões, defesa da vida. Os grupos – que como negros e mulheres representam a maioria da população brasileira –  reivindicam respeito à diversidade, ao pluralismo, demandas materiais e econômicas.

A explicação é da socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense, Flávia Rios, em entrevista ao Nexo.

Pautas classificadas como identitárias surgem no mundo político a partir de mobilizações bem-sucedidas da sociedade civil organizada, como atores relevantes na formulação de políticas públicas setoriais – um exemplo é a Lei de Cotas.

Esses grupos, entretanto, não se conseguem fazer representar nos partidos políticos e, por consequência, no Poder Legislativo, seja no âmbito municipal, estadual ou federal.

Por que?

A resposta está na “estrutura partidária” – acusam alguns. “No racismo” – denunciam outros. “No machismo, na misoginia”, arriscam terceiros. 

Cinco Letras

Em uma palavra: Poder!

Figuras públicas que ocupam posição de poder no país escancaram no seu existir os privilégios de cor, de gênero e de classe. Não são pessoas neutras e enxergam pautas identitárias como um risco de perda de poder. Daí quererem calar vozes que querem tratar temas polêmicos, geralmente, imersos na desinformação e ignorância.

O debate sobre o identitarismo é antigo nas esquerdas. O PT, inclusive, foi o primeiro partido a criar cota interna para candidatos. Mas, um de seus pares, Alberto Cantalice, diretor da Fundação Perseu Abramo, não se furtou a postar nas redes sociais que “grande parte dessa ‘esquerda’ escatológica se esconde atrás do identitarismo”.

O prefeito de Recife, João Campos, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), também, disse em entrevista ao jornal O Globo, em dezembro de 2021, que “a solução para o Brasil não está nas pautas identitárias”.

De acordo com a análise da socióloga Flávia Rios, no centro, as resistências acontecem  porque as pautas de grupos que reivindicam identidades ou politizam suas experiências sociais – como mulheres, negros e LGBT -, contrastam com  padrões comportamentais, costumes e valores tradicionalistas.

Ilustração poder

À  direita, os partidos mais conservadores tendem a ter mais resistências, ainda, porque as pautas identitárias desestabilizam ordenamentos sociais estabelecidos, como o lugar do homem, da heteronormatividade, do branco… 

Daí a estratégia à direita não de ocultar, mas de questionar e apresentar-se abertamente contra eles, para, inclusive, desconstruir todos os direitos conquistados pelos movimentos sociais antirracistas e feministas, entre outros.

Lugar de fala

Grada Kilomba, no livro Memórias da Plantação, usa a imagem de  Anastácia, escravizada e obrigada a usar a máscara do silenciamento – símbolo de nossa coluna Sem Mordaça – para escrever sobre o “senso de mudez e medo” imposto aos negros.

A máscara – analisa a escritora – representa “políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento (…) Quem pode falar? O que acontece quando falamos? Sobre o que podemos falar?”

Castigo de Escravos, Jacques Etinne Arago, 1839

Ilustração de Anastácia (Imagem: Reprodução)

E, mesmo “abolida” a escravidão, os poderosos seguem utilizando o mesmo mesmo expediente, como analisa Flavia Rios, com seu entendimento de que “a ideia de divisionismo, na verdade, atende à estratégia de simplificação das complexas lutas de pessoas que vivenciam opressões e desigualdades e serve para apagar, deliberadamente, seu existir e mantê-las silenciadas”.

O fato é que nem direita nem esquerda nem centro nem os extremos querem perder poder. Resumindo: tensão política nas Eleições 2022 que pretendemos enegrecidas pelos votos do povo preto e da parte antirracista da sociedade brasileira.

Avanços

Na última década, com as redes sociais e o seu uso político pela extrema direita, as pautas identitárias ganharam “luz contra” que contaminou, inclusive, a esquerda, ganhando um caráter acusatório contra grupos que colocam certas demandas e reivindicações no espaço público.

Os movimentos negro, de mulheres, LGBTQIAP+ e indígenas são responsáveis por conquistas importantes do ponto de vista legislativo e de mobilização da sociedade civil. Os partidos políticos reconhecem essas conquistas. Quer dizer, aceitam as pautas, mas não as pessoas que as representam como sujeitos políticos.

O Judiciário  – registre-se – tem atuado para que os partidos políticos garantam espaço para candidaturas negras, de mulheres… Os caciques partidários, entretanto, insistem em atuar como se o dinheiro do fundo partidário não fosse dinheiro público. Só que todo o processo democrático é sustentado pelo dinheiro do povo brasileiro, o que inclui o salário pago aos eleitos.

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Não basta lançar uma candidatura. Há necessidade de se compartilhar estratégias eleitorais. Nas eleições municipais de 2020, o Brasil registrou uma marca histórica em relação à proporção de candidaturas negras que, no entanto, não se transformaram em aumento de poder político – negras e negros com mandato seguem sendo minoria.

É preciso vontade política para fazer a diferença, abrir mão de poder. E, depois do processo eleitoral, há necessidade de – literalmente – se garantir que estas pessoas possam cumprir seus mandatos, vivas.

Vida e morte

Depois das Eleições históricas de 2020,  negros, mulheres e LGBTQIAP+,  parlamentares eleitos passaram a ter, sistematicamente, suas vidas colocadas em risco de violência e morte.

Até hoje permanece a pergunta:

Quem mandou matar Marielle – vereadora, negra, lésbica?

O simbolismo da sua morte mobiliza os movimentos sociais, impacta a política representativa no Brasil, cria mais oportunidades políticas e culturais para as candidaturas periféricas, de mulheres, mas não diminui barreiras nem o risco de morte dos nossos!

Em Niterói, no Rio de Janeiro, por exemplo, a vereadora Benny Briolly (PSOL),  em seu primeiro momento de mandato, teve que se retirar do país justamente porque estava sofrendo ameaças. Em Porto Alegre (RS),  a bancada negra passa pela mesma situação.

A marca da exclusão cotidiana invade o campo político quanto mais se ganha visibilidade, numa resistência não só discursiva. Existe um sentimento de impunidade daqueles que, desde sempre, ocupam o poder,

Desafio 2022, nós no poder

Eleger pessoas que defendam, na primeira pessoa, as políticas públicas que necessitamos. As leis sendo pensadas por quem necessita dela.

É certo que o discurso do ódio marcará presença nas eleições e o desafio será a discussão das pautas identitárias, porque, mais uma vez, nosso processo democrático estará envolto em notícias falsas, desinformação e manipulações sobre grupos sociais, com construções equivocadas e bizarras alimentadas especialmente pela ignorância. Fake news por si só tiram do foco o debate que importa.

Precisamos reorientar o modo nosso modo de debater as pautas identitárias – que vão muito além de costumes – sem perder o protagonismo.

 Pautas identitárias tratam de defesa da vida, 

de parte da sociedade  que nunca foi vista como humana, 

nunca teve contemplada a sua cidadania.

É disso que se trata!

Lula declarou que, se for eleito, sua obsessão será eliminar a fome, reduzir a desigualdade social e governar para os pobres. Ao mesmo tempo, o PT  enxerga o identitarismo como um erro. Prefere a linha “tudo pelo social” – só que não!

Eliminar a fome, sim. Mas também a desigualdade de gênero e raça. Governar para os pobres compreendendo que os pobres também são diversos! 

É preciso incluir em qualquer programa de governo – no âmbito federal, estadual e municipal – estratégias para maior inserção de mulheres e negros na política e no mercado de trabalho; combate à discriminação contra gays, transexuais e negros.

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Os postulantes a cargos públicos têm de ampliar o olhar para a sociedade, contemplando a interseccionalidade nas relações:  uma coisa é ser pobre, outra ser pobre e mulher, outra ainda ser pobre, mulher e preta; outra mais ainda, ser pobre, mulher trans, preta… A discriminação de raça, gênero, orientação sexual são obstáculos à inclusão social

Existe um sistema de opressão estrutural do racismo, do machismo e do sexismo, que violentam e assassinam mulheres, negros e população LGBTQIAP+ todos os dias, que ameaçam  direitos sexuais, reprodutivos, a liberdade de existir.  

Lutas por direitos civis não são lutas de minorias, mas da maioria da sociedade. A população negra é maior que a população branca. A população feminina é maior que a masculina. Mas mulheres ganham menos que homens e têm mais dificuldades de ascensão no mercado de trabalho, assim como negros em relação a brancos.

A luta por igualdade racial está na raiz da luta pelo fim da desigualdade social.

Acompanhe a edição Eleições Negras 2022, em construção ao longo deste ano, que traz a luta dos que vieram antes na política, celebra as mulheres negras no poder e, no nosso processo permanente de enegrecer a política.

Preparamos artigos para fazer valer nossa existência, através do voto, em 2022, explicando a força das candidaturas coletivas, a importância de políticas públicas, ações afirmativas e muito mais. 

É uma edição em aberto, que propõe manter viva a chama por um futuro melhor, pensando os desafios de 2022.

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1 comentário em “Pautas identitárias”

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