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Rastafari, um jeito de estar no mundo

Perguntas que este artigo responde:
Qual a origem da palavra Rastafari?
Quem é o Messias negro?
Rastafari é religião?
Quem é o Deus da religião Rastafari?
Os Rastafari são cristãos?
Quem criou a religião Rastafari?
Todo Rastafari usa dreads e fuma maconha?
O que significam as cores verde, amarelo e vermelho?
Rastafari é religião da África ou da Jamaica? 
O que Marcus Garvey tem a ver com o movimento Rastafari?
Existe uma Bíblia dos Preto?
Existe uma língua própria do Rastafari? 

Três faixas horizontais de cores ao fundo, com ilustração centralizada à frente
Bandeira Rastafari (Imagem: Reprodução)

Amor, compaixão, paz, conexão, modo de vida, movimento social, cultural, antirracista, libertário, de valorização das raízes africanas… Tudo muito além de dreadlocks, maconha e Bob Marley.

Por Tania Regina Pinto

O nome é herança de Ras Tafari Makonnen, o príncipe Tafari, posteriormente chamado Haile Selassie I, que viveu entre 1892 e 1975, e reinou na Etiópia entre 1930 e 1975, época em que o país era a única nação independente, não colonizada, da África. 

De origem amárica, o idioma etíope, a expressão “Ras” significa “cabeça”, que na Etiópia equivale a príncipe ou chefe, e “Tafari” se refere a “quem é respeitado/temido”.

Rastafari, a religião, o movimento, o modo de ser, de estar na vida é um fenômeno da segunda metade do século XX. Mistura elementos religiosos, políticos, raciais e culturais. 

Haile Selassie, o Ras Tafari, se reconhecia como herdeiro direto do rei bíblico Salomão e da rainha de Sabá, Makeda, casal que, segundo a tradição etíope, forma a dinastia salomônica que reina naquela região durante a Idade Média.

Leia sobre a Etiópia, a África não colonizada e seu imperador Haile Selassie 

Considerado o próprio Deus, o imperador etíope torna-se internacionalmente conhecido no ano de 1936, na Liga das Nações, a primeira organização intergovernamental do mundo, quando discursa sobre o avanço dos conflitos e das teorias racistas que culminam na Segunda Guerra Mundial:

“Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação; enquanto a cor da pele de uma pessoa não for mais importante que a cor dos seus olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os direitos humanos básicos, sem olhar as raças, até esse dia, os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida mas nunca alcançada.” 

Bob Marley, o mais conhecido dos representantes do Rastafari, inspira-se no discurso de Selassie para compor sua música War (Guerra), repetindo as palavras do líder etíope e misturando-as às suas na canção:

“…Até que a filosofia que torna uma raça superior
E outra inferior, seja finalmente permanentemente
Desacreditada e abandonada haverá guerra,
Eu digo guerra…”

A outra profecia

Mas é outro discurso considerado profético, o do pan-africanista Marcus Garvey, feito na década anterior, que transforma Haile Selassie I no redentor anunciado, o Messias preto, o Deus negro encarnado. 

Garvey, símbolo político de resistência negra, fala para cerca de 25 mil pessoas, no Madison Square Garden em Nova York (EUA), em agosto de 1920, sobre a chegada de um rei para libertar o povo negro: 

Olhem para a África, quando um rei preto for coroado, o dia da libertação estará próximo”.

Mas Garvey nunca foi Rasta. Ele nasce na Jamaica em 1887 e morre em 1940. O movimento Rastafari surge na mesma Jamaica, na década de 1930, entre descendentes de escravizados africanos levados para o país pelos ingleses, mas se expande nos anos 1970 e 1980.

Garvey defende uma solução prática de regresso à África de todos os africanos e organiza programas de migração em massa, negociados com governos africanos e fretando linhas de navios a vapor. Mas não era isso o que os Rasta queriam. Eles buscavam Shashamane – a Terra Prometida dos Rastafari pelas mãos do Messias negro.

Título centralizado e homem tocando contrabaixo ao lado de uma árvore com pôr do sol ao fundo
Capa do documentário Shashamane, dirigido por Giulia Amati (Imagem: Divulgação)

Durante a espera, muitos se retiraram para o interior da ilha, para as montanhas, e fundaram suas próprias comunidades.

Ainda no período colonial, quando eram indagados por autoridades policiais sobre o respeito às leis e à rainha da Inglaterra, respondiam que só tinham um rei, Selassie, e as leis que seguiam eram as da Etiópia.

Na Jamaica

O fato de Selassie recusar a imagem de divindade fortalece o entendimento alimentado pelos Rasta de que ele, Ras Tafari, é o Cristo reencarnado. E o imperador se surpreende com a intensidade com que é recebido quando chega à Jamaica em 1966.

Os Rasta desceram das montanhas… Multidões tomaram as ruas de Kingston a fim de prestigiar os três dias da visita. 

Para os Rastafari, na primeira vinda, o Messias se apresentou como humilde carpinteiro, mas sua volta seria como rei, com poderes para atuar no mundo material e político dos homens.

Tudo tem a ver com a profecia que embute a consciência de que a origem africana não significa pertencer a uma raça de escravizados, mas a um povo orgulhoso com uma história mais antiga que a de todas as nações europeias, inclusive a grega

Pioneiros

Durante a visita, o imperador visita o túmulo de Marcus Garvey, encontra membros da comunidade Rastafari, encoraja-os a se repatriar, mas enfatiza que ainda há trabalho a ser realizado na recém independente Jamaica, e doa fundos para a construção de uma escola.

Quando passa de carro pela cidade portuária de Montego Bay, a caminho do aeroporto, as pessoas produzem som semelhante ao rugido de leões – ele é o Leão de Judá.

Desde então, todo dia 21 de abril é celebrado pelos Rasta em memória da visita de Selassie.

Em 1969, colonos Rastafari solicitam cidadania etíope e outros benefícios rumo a Shashamane – a Terra Prometida. No ano seguinte, a corte imperial etíope ordenou a distribuição de dez hectares de terra entre doze colonos, os rastas pioneiros. 

Bíblia dos Pretos

Rastafari é religião judaico-cristã afrocêntrica, mas não se confunde com as vertentes do pensar cristão da realidade brasileira. A Bíblia dos Rastas, considerada a “Bíblia dos Pretos”, é a Bíblia dos Macabeus, que não oculta livros do Pentateuco, especialmente o Livro do Êxodo. 

E há também uma versão etíope da Bíblia, 800 anos mais antiga que a do Rei James (inglesa, de 1611), composta por 88 livros, incluindo a versão dos Macabeus, mais os livros de Enoque, Esdras e Baruque.

Haile Selassie (Imagem: Reprodução)
Haile Selassie (Imagem: Reprodução)

Outra particularidade da percepção Rastafari envolve o cristianismo da Igreja Ortodoxa da Etiópia, que integra elementos europeus e etíopes. 

É na Igreja Ortodoxa da Etiópia que Tafari Makonnen é proclamado imperador e renomeado Haile Selassie (O Poder da Trindade), destinado a levar o mundo a uma era de ouro. 

Movimento negro

Na visão dos Rasta, nas antigas civilizações africanas, os colonizadores europeus encontraram professores – e não escravizados – e fortaleceram-se ao perceber como são inúmeras e pouco conhecidas as contribuições africanas para a humanidade, espirituais e científicas.

O Rastafari surge como reação ao colonialismo e à opressão aos povos negros. Denuncia o sistema político e econômico, cruel e racista; condena o ódio, o ciúme, a inveja, o engano, a astúcia, a traição e toda a corrupção; rejeita a competição; revela o perigo de ser privado de identidade e convencido a temer a liberdade; acredita que enquanto houver pessoas marginalizadas, haverá pessoas oprimidas.

E vai além: celebra a Vida, trabalha em favor da fraternidade, crê que os povos negros possuem estilo de vida a compartilhar com o mundo.

Para os Rasta, revolução tem a ver com mudanças no coração e na mente. Poder implica liberdade para decidir o próprio destino. Lar implica o mundo todo. E nada tem a ver com gênero ou cor da pele.

Um dos estudiosos do movimento, Leonardo Barrett, descreve em sua obra “The Rastafarians, The Dreadlocks of Jamaica” algumas crenças fundamentais dos Rastafari. Entre elas, a de que a Etiópia é o Paraíso e de que os negros regenerarão o mundo.

Somos deuses

O Rastafari pode ser percebido como movimento que promove a humanidade de Deus e a divindade do homem. Deus se revela ao homem por meio da própria humanidade, quando reconhecemos o divino em nós e nos outros.

O corpo é a morada do espírito. Daí, a vitalidade e a espiritualidade serem inseparáveis – os Rastafaris mais radicais não olham para os mortos e não vão a enterros para manter o padrão energético. 

Como os egípcios, os Rasta creem que a humanidade não está separada nem é diferente de Jah – corruptela da palavra Javeh/Jeová. 

E eles extraem dos livros do Antigo Testamento esta verdade, bem como os princípios que orientam seu modo de viver. 

O que entra na boca…

Adeptos do Rastafari se alimentam de acordo com as estações do ano, mastigam bem, demonstram gratidão e respeito pelo alimento e por todos que contribuíram para a refeição chegar à mesa. 

Um dos nove princípios da religião prega o vegetarianismo – abre rara exceção para o uso de certas peles animais. É proibido o consumo de carnes suínas, peixes de concha, peixes sem escamas e caracóis. Eles não cozinham com gás – usam lenha.

Comunidade rastafari adepta da dieta Ital (Imagem: Reprodução)
Comunidade rastafari adepta da dieta Ital (Imagem: Reprodução)

A lógica é simples: comer apenas “I-tal” (termo que significa puro, natural e/ou limpo). Para beber, a preferência é para os chás herbais.

Ser e estar

A vestimenta tradicional é mais larga e com tecido de algodão colorido. Os dreadlocks também compõem a estética rastafariana. Mas para além da beleza ou do despertar do sentimento do belo, o uso de dreadlocks tem a ver com a crença de que o corpo é um templo e deve ser o mais próximo possível do natural.

Os Rasta não cortam nem penteiam os cabelos, que precisam ser cobertos por um turbante, e evitam aparar a barba. 

Para a saúde, a preferência é por tratamento com ervas medicinais.

O consumo da “ganja” (maconha), para limpeza e iluminação, não é feito por todos os adeptos e, quando realizado, segue um ritual: o grupo se reúne, reza em agradecimento a Jah e só então fuma a planta, que é considerada sagrada.

O uso da maconha só para fins recreativos é considerado desrespeitoso. 

Suas cores são: vermelho, verde e amarelo. O verde remete à vegetação africana; o vermelho, ao sangue dos mártires, e o amarelo à riqueza e prosperidade do continente antes da exploração colonialista. Estas são, também, as cores da bandeira da Etiópia, que representam lealdade a Selassie e à África acima de qualquer outra nação.

Leão de Judah (Imagem: Reprodução)
Leão de Judah (Imagem: Reprodução)

Outros ícones do Rastafari são a própria imagem do imperador e o Leão de Judá, expressão bíblica, metáfora para a figura do Cristo, o Messias prometido nas Escrituras Sagradas do cristianismo e do judaísmo, Leão da Tribo de Judá.

Bob Marley, o reggae

Outro elemento muito forte na cultura Rasta é a música, com Bob Marley e Peter Tosh como seus maiores porta-vozes. O reggae, típico da Jamaica, alicerçou-se na tradição Rastafari, transformando-o também em movimento cultural

Bob Marley usa o reggae para cantar a liberdade, a paz, o amor e, com o sucesso mundial, ajuda a divulgar o movimento.

Bob Marley no palco em foto preto e branco
Bob Marley se apresentando ao vivo no Hallenstadium em Zurique, Suíça, em 30 de maio de 1980. (Imagem: Wikimedia Commons)

Música de protesto, o reggae é resultado da fusão de estilos musicais e tem seu nome inspirado na palavra raggamuffin, ou seja, pessoa esfarrapada. Contribuiu para a identidade, sentimento de pertença e autoestima da comunidade negra e expandiu-se para Europa, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia.

O Rastafari chega a Bob Marley pelas mãos de Rita Marley, sua esposa. Ela estava na Jamaica em 1966, quando Haile Selassie esteve no país e relata ter percebido em aceno dele, quando cruzava as ruas da cidade em carro aberto, as marcas da crucificação de Cristo (stigmata) na palma das mãos. 

Língua da resistência

Os Rasta têm uma linguagem própria conhecida como Iyaric ou Dread Talk, criada por membros do movimento como resistência à imposição da língua inglesa, dos colonizadores, às línguas africanas tradicionais.

Eles usam o Iyaric para afirmar a sua libertação cultural, espiritual e linguística de histórias e instituições de opressão, combinados com lógicas e métodos anticoloniais de viver.

Existe, inclusive, a Revista Iyaric, dirigida por estudantes, publicada pelo Centro de Pesquisa sobre a América Latina e o Caribe da Universidade de York, do Canadá. 

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Fontes: Super Abril, História do Mundo, Infopédia, BBC, G1, Greenme, DrBanz, Centro de Pesquisa sobre a América Latina e o Caribe da Universidade de York, livro Rastafari, de André Duarte P. de Albuquerque

Escrito em abril de 2024

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