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Haile Selassie, o Poder da Trindade

Perguntas que este artigo responde: 
Quem foi Haile Selassie I?
Qual a ligação entre Haile Selassie I e a Bíblia?
Qual o significado de Hailé Selassié?
Qual a origem da palavra Rastafari?
Quem é o Messias negro?
Rastafari é religião?
Quem é o Deus da religião Rastafari?
Como se chama a Terra Prometida?
Os Rastafari são cristãos?
Quem criou a religião Rastafari?
Qual o discurso mais famoso de Haile Selassie?

Haile Selassie
Haile Selassie (Imagem: Reprodução)

Símbolo da soberania e da resistência africana ao colonialismo europeu, o Deus negro imperador, o Messias retornado.

Por Tania Regina Pinto

Tafari Makonnen Woldemikael nasce em 1892 em Ejersa, Goro, na Etiópia. Criança de origem nobre, que traz no primeiro nome a imposição do respeito ou temor – Tafari quer dizer “aquele que é respeitado ou temido” -, passa a infância no Palácio Real em Adis Abeba, capital do país, recebe educação tradicional etíope e também de missionários franceses, torna-se imperador aos 38 anos de idade.

Seu pai, Ras Makonnen Woldemikael, era primo e amigo íntimo do imperador Menelik II que, ao identificar as habilidades e personalidade de liderança no jovem Tafari, nomeia-o governador da província de Sidamo aos 17 anos! E, dois anos depois, governador geral de Harrar!

Político progressista, Tafari busca romper o poder feudal da nobreza local. Ainda em 1911, casa-se com Wayzaro Menen, bisneta do imperador Menelik II, tornando-se Ras, Ras Tafari, príncipe Tafari. Sim!!!! O nome do movimento Rastafari é herança de Ras Tafari Makonnen, o príncipe Tafari, posteriormente coroado imperador Haile Selassie I.

As cores da bandeira da Etiópia – verde, vermelho e amarelo -, no Movimento Rastafari, representam lealdade a Selassie e à África acima de qualquer outra nação.

Leia o artigo Rastafari, um jeito de existir

Quanto à mudança de nome – de Tafari Makonnen para Haile Selassie -, ela acontece quando o príncipe é proclamado imperador, em 1930, durante cerimônia na Igreja Ortodoxa da Etiópia – uma das tradições cristãs mais antigas do mundo.

Etiópia que é a única nação africana nunca colonizada e onde surge o ser humano há cerca de 200 mil anos, às margens do rio Nilo. 

Leia o artigo Etiópia, a África não colonizada

Celebridade

Cristão ortodoxo, Haile Selassie, o Ras Tafari, se reconhecia como herdeiro direto do rei bíblico Salomão e da rainha de Sabá, Makeda, casal que, segundo a tradição etíope, forma a dinastia salomônica que reina naquela região entre 971 e 931 antes da Era Comum.

Os Rastafari – por orientação de Haile Selassie I – também identificam-se como cristãos ortodoxos etíopes e o consideram um representante de Deus, enviado para proteger a África do colonialismo europeu, resgatar os africanos em diáspora e defender a fé cristã africana pré-colonial.

Haile Selassie
Haile Selassie (Imagem: Reprodução | AP)

O imperador, de seu lado, sempre teve sede de poder e, como orador talentoso, brilha para além da África e da Jamaica. Seus discursos estão entre os mais memoráveis do século XX. 

Sua visão sem fronteiras leva a Etiópia a integrar as Nações Unidas e a sua experiência e pensamento político, em promover o multilateralismo e a segurança coletiva, provam-se relevantes até os dias atuais.

O discurso

Depois da invasão da Etiópia pela Itália em 1935, exilado na Inglaterra, Haile Selassie I conquista o cenário internacional. É dia 30 de junho de 1936. Ele está na Liga das Nações, a primeira organização intergovernamental do mundo, e discursa sobre o avanço dos conflitos e das teorias racistas que culminaram na Segunda Guerra Mundial:

“Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação; enquanto a cor da pele de uma pessoa não for mais importante que a cor dos seus olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os direitos humanos básicos, sem olhar as raças, até esse dia, os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida mas nunca alcançada.

E igualmente, enquanto os regimes infelizes e ignóbeis que suprimem os nossos irmãos, em condições subumanas, em Angola, Moçambique e na África do Sul, não forem superados e destruídos, enquanto o fanatismo, os preconceitos, a malícia e os interesses desumanos não forem substituídos pela compreensão, tolerância e boa-vontade, enquanto todos os africanos não se levantarem e falarem como seres livres, iguais aos olhos de todos os homens como são no Céu, até esse dia, o Continente Africano não conhecerá a paz. Nós africanos iremos lutar, se necessário e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal”.

Trinta anos depois, em 1966, ele chega, pela primeira vez, na Jamaica e é recebido como mito por milhares de pessoas, desesperadas para ver seu deus. Entre os devotos, Rita Marley, esposa de um então jovem músico de reggae, Bob Marley.

Escalada pelo poder

Menelik II é o mentor e protetor de Ras Tafari/Haile Selassie. Menelik II frustra a primeira tentativa dos italianos de colonizar a Etiópia em 1896 e prepara o país para “conviver” com o neocolonialismo branco nos países vizinhos, Eritreia e Somália. Tudo sem perder de vista a identidade nacional. 

Ele fortalece a Igreja Ortodoxa da Etiópia, funda o primeiro banco do país, instala telefones, telégrafos, serviço postal, constrói ferrovias, rodovias, defende os oprimidos e carentes…

Em 1913, com sua morte, o neto Lij Yasu o sucede no trono. Sua estreita relação com o islã, entretanto, o torna impopular junto à maioria da população de religião cristã. Em consequência, em 1916, a Assembleia dos Nobres junto com a Igreja Ortodoxa Etíope, o tiram do poder.

Selassié, em 1942 (Imagem: Domínio Público)
Selassie, em 1942 (Imagem: Domínio Público)

Ras Tafari, então, lidera um movimento de oposição que resulta na coroação de Zawditu, filha de Menelik II, como imperatriz e Ras Tafari como Regente e herdeiro do trono

Zawditu se interessa por assuntos religiosos, enquanto Ras Tafari compartilha as visões estratégicas de Menelik II e tem a intenção de continuar o processo de adaptação da Etiópia àqueles tempos. 

O apogeu

Em 1928, Ras Tafari assume o controle do Exército e é coroado rei (Negus, em amárico). Em abril de 1930, morre a imperatriz e, em novembro do mesmo ano, Ras Tafari recebe o título de Negasa Negast (Rei dos Reis) – é o 225º imperador na dinastia do Rei Salomão.

O cumprimento de mais uma profecia gera outra mudança no seu nome: Haile Selassie – em amárico, o Poder da Divina Trindade ou, na versão estendida, Sua Majestade Imperial, Imperador Haile Selassie, Eleito de Deus, Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá.

Na sua coroação, autoridades do mundo inteiro, com direito a capa da revista Time. Na época, o jornal The New York Times especulou que as celebrações custaram mais de US$ 3 milhões!

No poder

Selassie promove uma série de reformas sociais, incluindo a abolição da escravidão e a introdução da primeira constituição escrita do país, na qual restringe a sucessão ao trono somente aos seus descendentes, e estabelece que a pessoa do imperador é “sagrada, sua dignidade, inviolável e seu poder indiscutível”.

Mas ao fracassar na defesa da Etiópia durante a segunda guerra Ítalo-Etíope, exila-se na Inglaterra. 

Na Etiópia, a Itália instala um governo de massacres e segregação. Da Inglaterra, Selassie busca simpatia pelo seu país, o que só consegue quando a Itália se alia à Alemanha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Com o apoio da Inglaterra, mas contando essencialmente com forças de resistência etíopes e norte-africanas, Selassie retorna a Adis Abeba em 5 de maio de 1941. 

A rainha e a guerra

Sua esposa, Menem, também é coroada no 2 de novembro de 1930, refletindo o entendimento de que homem e mulher devem estar lado a lado. Como rainha, investe na educação acadêmica das mulheres, devota-se intensamente à religião e investe na reforma das igrejas, principalmente após a segunda invasão italiana.

Durante a guerra, Menem desempenha papel fundamental na organização das mulheres etíopes, a fim de cuidar dos soldados feridos e protestar contra o conflito. Em discurso em 1936, ela declara que as mães italianas e mulheres estéreis também deveriam ocupar-se em evitar o desenrolar de guerras.

Mudança de estratégia

Até a segunda invasão, Selassie mantém a estratégia de Menelik II, de dialogar denunciando racismo e preconceito, com ênfase às contribuições culturais dos africanos, mas vem do exílio com novas ideias inspiradas na evolução da Inglaterra.

Promove a reforma e recuperação da Etiópia, devastada pela guerra. Institui imposto progressivo sobre a propriedade de terras. Promulga, em 1955, uma nova constituição que institui o voto universal e concentra mais poder em suas mãos!

Selo impressos pelos Correios em 1961 - C 456 Selo Imperador da Etiopia Haile Selassie 1961 Quadra 3 (Filatelia Halibunani)
Selo impressos pelos Correios em 1961 – C 456 Selo Imperador da Etiopia Haile Selassie 1961 Quadra 3 (Filatelia Halibunani)

Na volta ao poder, também dissolve a Federação da Etiópia e Eritreia, estabelecida em assembleia da Organização das Nações Unidas – ONU e, em 1962, reduz o país vizinho à província do seu Império, o que resulta em uma luta armada que dura 30 anos.

Só em 1991, a população do país votou pela independência da Eritreia, reconhecida em 24 de maio de 1993.

Golpes no Messias negro

Nos anos 1960, Haile Selassie sofre duas tentativas de golpe e participa da criação da Organização da Unidade Africana, a qual preside em 1963 e 1967, enquanto, aos olhos dos jamaicanos, se converte em mais que um poderoso imperador, a ponto de ele mesmo se surpreender com tamanha popularidade.

Quando visita a ilha, em 1966, os rastas descem das montanhas e as multidões tomam as ruas de Kingston para prestigiar o Leão de Judá – expressão bíblica, metáfora para a figura do Cristo, o Messias prometido nas Escrituras Sagradas.

Ele nunca se afirmou Deus encarnado e rejeitou a crença messiânica em sua pessoa. Mas, nesta visita, orienta os rastafaris a se batizarem na Igreja Cristã Ortodoxa Etíope e os encoraja à repatriação para Shashamane – a Terra Prometida dos Rastafaris, enfatizando, contudo, que ainda havia trabalho a ser feito na recém independente Jamaica. 

Em 1969, colonos Rastafari requerem cidadania etíope e, no ano seguinte, a corte imperial ordena a distribuição de dez hectares de terra entre doze colonos, os rastas pioneiros.

Ocaso

A primeira metade da década de 1970 marca o fim da Era Haile Selassie:

  • 1972/73 – A grande fome agrava a contestação ao governo imperial. Sobram problemas políticos e os estudantes exigem reformas para que as terras não pertençam mais à nobreza.
  • Janeiro de 1974 – Diante da crise econômica, da escassez de alimentos, do desemprego e da estagnação política, um segmento do Exército organiza um motim e, no dia 12, a dinastia liderada por Haile Selassie é deposta e estabelecido um governo militar provisório, de ideologia marxista. Selassie é mantido em prisão domiciliar em seu palácio.
  • 27 de agosto de 1975 –  O imperador é encontrado morto no palácio, em Adis Abeba. Oficialmente, a causa mortis decorre de complicações durante operação da próstata. Outra versão – contestada pela família, se refere a assassinato por asfixia.

Em 1991, são encontrados seus restos mortais conservados no porão do palácio imperial. E o dia 5 de novembro de 2000 marca o seu funeral e sepultamento.

Haile Selassie I Vive

Para os admiradores, apaixonados, devotos, Haile Selassie será sempre o grande líder, modernizador, referência no cenário global, defensor da cooperação pan-africana, que deixa um legado que continua a afetar a vida de milhões de pessoas em todo a África. Inspiração de lideranças pretas como Martin Luther King e Nelson Mandela na luta pela emancipação do continente africano, ao oferecer para o mundo opção africana de civilização.

O homem e as controvérsias

Haile Selassie I não é unanimidade. Miúdo – 1m57 de altura, tinha seus complexos, manias, carências, defeitos, tinha a sua humanidade. 

Em reuniões e viagens oficiais, um funcionário se antecipava ao imperador – antes de ele se sentar -, para “escolher com rapidez e eficiência a almofada adequada”:

“Eu possuía um conhecimento especializado… Nosso amo não podia viajar sem mim. Se sua dignidade exigia que ele se sentasse em tronos, e não podia fazer isso sem ter sob os pés uma almofada, e eu era o seu colocador…”

Esta história está no livro O Imperador, do polonês Ryszard Kapuscinski, dos anos 1970, quando entrevistou vários funcionários do governo, como o secador de sapatos, o porta-toga oficial, camareiros, porta-bolsas, carregadores de presentes e guarda-cães, além do colocador de almofadas.

Durante o exílio, também, analfabetos etíopes se endividavam para pagar um escriba que levasse ao rei seus lamentos e desejos. Isso porque uma simples troca de olhares com ele, dizia-se, enchia as pessoas de esperança.

Haile Selassie e JK (Imagem: Domínio Público)
Haile Selassie e JK (Imagem: Domínio Público)

Inteligente e astuto, Selassié apreciava o devotamento, a ponto de escolher para os cargos confiança os despreparados e ignorantes. Não fazia a menor questão de competência, bastava que fossem fiéis.

Centralizador, aprovava pessoalmente qualquer despesa acima de 10 dólares.

No mundo, tinha seus desafetos e críticos, como os eritreus que o detestavam pelo tempo que seu país foi anexado à Etiópia. 

O Relatório da Human Rights Watch o acusa de agir com “indiferença oficial” à fome em várias regiões do país e de tentar esconder a crise alimentar de 1972 e 1973, na qual cerca de 200 mil pessoas morreram.

Existem denúncias de repressão violenta contra as pessoas e grupos étnicos que se opunham ao seu império. E há quem defenda que ele deve ser lembrado como ditador.

Marcus Garvey – responsável indireto por sua deusificação -, o descreve como “covarde”, o critica pelos horrores da escravidão – a prática não foi proibida na Etiópia até 1942 – e pela subserviência à branquitude:

 “Todo negro orgulhoso de sua raça deve ter vergonha da maneira como Haile Selassie se rendeu aos lobos brancos da Europa”.

Liderança incômoda, o imperador não era visto com bons olhos nem pelos Estados Unidos nem pela União Soviética durante a chamada “Guerra Fria”, conflito político-ideológico que travado entre as duas potências entre 1947 e 1991 – o pan-africanismo não interessava à branquitude – nem ao capitalismo nem ao socialismo. 

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Fontes: Super Abril, História do Mundo, BBC, livro Rastafari, de André Duarte P. de Albuquerque, Wikipédia, BBC – Jamaica, Aventuras na História, EBiografia

Escrito em março de 2024

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