Pular para o conteúdo

Revolta de Carrancas

O outro 13 de maio, uma rebelião de escravizados no sudeste do Brasil, sem direito a alforria.

O que este artigo responde:
O que foi a Revolta de Carrancas e por que é chamada de “o outro 13 de maio”?
Quando e onde ocorreu?
Quem liderou (Ventura Mina, Julião Congo, Damião e o mentor Francisco Silvério)?
Qual o estopim (boatos de abolição pelos caramurus) e o contexto político?
Como se deu a repressão e as punições (Lei nº 4/1835, enforcamentos)?
Que legado a revolta deixou para a memória do movimento negro?

CONHEÇA OS EBOOKS E CÍRCULOS

O "Projeto Ebó" foi pensado para impulsionar nossas potências negras. Clique e saiba mais.

A luta é por liberdade – como sempre -, 55 anos antes da assinatura da lei da “abolição da escravatura” pela princesa portuguesa, no dia 13 de maio de 1833. O palco é o sul de Minas Gerais. Na época, Província de Minas Gerais, nas fazendas de propriedade da poderosa família Junqueira, de origem portuguesa, na Freguesia de Carrancas, hoje São Thomé das Letras. 

Daí o nome da revolta que dura poucas horas e deixa 30 mortos.

O 13 de maio de 1833

Tudo indicava que seria uma segunda-feira normal. Gabriel Junqueira estaria no Rio de Janeiro, cumprindo as funções de deputado, e seu filho, de mesmo nome, cuidando da administração da Fazenda Campo Alegre, herança de João Francisco Junqueira, patriarca da família.

Na parte da manhã, as pessoas escravizadas tirariam o leite e alimentariam todos os animais. À tarde, trabalhariam na roça, cuidando das plantações de milho, feijão, arroz…

Como de costume, Gabriel, o filho, juiz de paz do povoado, perto do meio-dia, vai até a lavoura, a cavalo, supervisionar o trabalho dos cativos. Só que, desta vez, é surpreendido. Tem seu animal derrubado e é morto a pauladas e golpes de foice por Julião Congo e Ventura Mina, escravizados pelos Junqueira

Quem conta essa história é o próprio Julião, durante interrogatório:

“O cavalo fugiu e um moleque fiel o cavalgou para contar à família do ‘senhor moço’ – assim Gabriel era chamado pelos escravizados -, o que estava acontecendo”.

O nome do “moleque” que fez a delação, apesar de escravizado como os companheiros, era Francisco. Mas de pouco adiantou a sua presteza. 

Ao se aproximarem da casa grande, os rebeldes percebem que tem gente armada esperando por eles e decidem ir para a sede da vizinha Fazenda Bella Cruz, de José Francisco Junqueira, irmão do deputado.

Com a mudança de planos, no caminho, o pequeno grupo de sete pessoas cresce para 35! 

O saldo do ataque à Fazenda Bella Cruz é a morte das sete pessoas da família que estavam ali. 

A brutalidade

É o momento classificado como o mais grave e brutal da rebelião – por parte dos revoltosos que invadem a propriedade e investem contra José Francisco e sua esposa Antônia Maria. O casal se refugia no quarto, mas não consegue escapar. A porta do cômodo é arrombada com um machado e o vassalo Antônio Retireiro dispara um tiro de revólver no homem. 

Quanto à esposa, consta no auto de corpo de delito, ferimentos no rosto e no couro cabeludo com objetos cortantes. Outra mulher, Ana Cândida, viúva do patriarca da família, é assassinada a golpes de foice e tem a cabeça decepada.

Três crianças também são mortas com brutalidade.

No início da noite do mesmo 13 de maio, registra-se a morte do genro do fazendeiro, assassinado em uma emboscada ao atravessar a porteira.

Uma das testemunhas interrogadas sobre o caso, Raimundo José Rodrigues, marceneiro e morador da Fazenda Traituba, perto da Fazenda Bella Cruz, conta que, mesmo depois de mortas, as vítimas foram castradas e tiveram as mãos machucadas com pedras

Mais confronto

Enquanto a chacina acontece na Fazenda Bella Cruz, os demais revoltosos se dirigem à Fazenda Bom Jardim. Mas, informado do que estava acontecendo nas outras fazendas, o proprietário João Cândido trancafia os escravizados na senzala, para que não se unam ao grupo de revoltosos.

Na defesa do fazendeiro João Cândido da Costa, dois escravizados fieis ao seu senhor, armados, junto com outros homens brancos, recebem os rebelados à bala.

Revolta de Carrancas (Imagem: Reprodução)

Revolta de Carrancas (Imagem: Reprodução)

No embate, eles matam Ventura Mina, principal líder da revolta, e também Inácio, Matias, Firmino e Antônio Cigano. Os demais se refugiam no mato e, dias depois, são capturados.

Não há mais informações sobre esse confronto no chamado “processo dos Junqueira”.

Exercício de liberdade

Na acusação, o líder Ventura Mina é descrito como um escravizado de “gênio fogoso e ardente, empreendedor, ativo, laborioso”, com grande influência sobre os réus; “amado, respeitado e obedecido até por estranhos”.

Alguns dos seus 31 companheiros de cativeiro, quando presos, inclusive, alegam ter participado do levante por “medo” de Ventura. Tal justificativa – verdadeira ou falsa – não alivia a pena dos envolvidos: a forca.

Registre-se que Damião – entre os principais ativistas do levante – não espera ser delatado ou condenado. Ele próprio garante a sua morte por enforcamento, como derradeiro exercício de liberdade.

“Singular”

Marcos Ferreira de Andrade, professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), historiador e estudioso do tema há três décadas, classifica essa insurreição como “singular”. Isso porque, além de ser a maior condenação coletiva à pena máxima da história da escravização no país – 17 foram condenados à forca – , a rebelião acontece a partir do confronto direto entre escravizados e uma família escravocrata.

Sobre a Revolta de Carrancas ter a maior condenação coletiva à pena máxima da história da escravização no país – característica apontada como “singularidade” do levante -, não é demais considerar que nunca teremos condições de dimensionar, em intensidade, as penas infringidas ao povo negro ao longo de sua história em África e na diáspora. Para o povo negro, de fato, continua valendo a pena de morte, mesmo que, pela lei, não esteja mais em vigor. 

Sem contar que no saldo da “rebelião mais sangrenta” – outra característica que se tenta dar à tal revolta, para salientar a brutalidade dos escravizados. Reflita-se sobre o registro final, o rescaldo da batalhados 30 mortos, 21 são pessoas negras.

Revolta de Carrancas (Imagem: Reprodução | Bruno Portela)
Revolta de Carrancas (Imagem: Reprodução | Bruno Portela)

Quer dizer, a Regência é implacável na condenação: 17 dos 31 denunciados são enforcados em praça pública na vila de São João del-Rei, entre dezembro de 1833 e abril de 1834, e suas cabeças são colocadas em estacas, como relata o professor Marcos Andrade que, em uma investigação sobre “a memória do levante” soube de um lugar em Cruzília (MG) chamado “Cabeça Branca”, onde as cabeças dos insurgentes ficaram expostas à ação do tempo. 

E mais: “duas pessoas pretas, supostamente escravizadas, que se dedicavam aos afazeres domésticos com um convívio mais próximo com seus senhores” também foram assassinadas – registra o presidente da província, Manoel Ignácio de Melo Souza, em correspondência ao Ministério da Justiça.

Singular?!

Visto de outro ângulo, ainda, nada de “singular” em mais esta revolta onde “os inocentes pagam pelos pecadores” – se permitem usar uma máxima cristã. Sim. Os inocentes são os escravizados; os pecadores, os que escravizam, roubam a liberdade, a dignidade, a vida… Me engano?

É no continente africano que tem início a violência contra os nossos corpos, o nosso existir, é durante a travessia do Atlântico… é na atualidade, com as micro e macro agressões, com o desrespeito, a intolerância, , a injustiça as diversas faces do racismo, da discriminação e do preconceito

Voltando a Carrancas, o professor Marcos Andrade conta também que o único condenado que consegue evitar a pena de morte é Antônio Resende, escravizado de Gabriel Francisco Junqueira. Antônio fez chegar uma petição ao Imperador e teve a “vida salva”, assumindo o papel de executor de seus companheiros

E esta “auto traição” – o ponto de vista é meu – o manteve mais que cativo: além de condenado à prisão perpétua, exerceu a função de carrasco até o fim da vida

Chibata do poder

A história dos Junqueira no Brasil começa em Rio das Mortes, no ano de 1750, com a chegada de João Francisco, português de São Simão da Junqueira, que recebe uma grande área de terra oferecida pela Coroa. 

É o começo das fazendas Campo Alegre e Bella Cruz e da construção de uma grande e poderosa família do sudeste mineiro. E não só por suas terras…

Além de grandes propriedades, a família possuía a maior parte dos escravizados na região. Só a Fazenda Campo Alegre, do deputado, em 1839, tinha 103 escravizados para cuidar do gado e do plantio. E a grande maioria, proveniente da África centro-oriental.

Revolta de Carrancas – Chibata do Poder (Imagem: Reprodução)

E isso, em uma época na qual poder, riqueza e influência eram percebidos pelo número de pessoas mantidas em cativeiro – o que só se altera depois de 1850, com a criação da Lei de Terras , que transforma a terra em capital. 

Na primeira metade do século XIX, dos 4.053 habitantes do povoado chamado Freguesia de Carrancas, 62,5% eram pessoas de origem africana e 38,5%, pessoas livres. 

De acordo com estudos sobre a demografia do tráfico humano internacional, Brasil, Caribe e Cuba registram um aumento significativo na entrada de africanos para a escravização. 

Só Minas Gerais absorve 48% da população africana que aporta no país, tamanha a sua dependência de mão de obra africana qualificada para a lavoura e trabalho nas minas.

O desafio de se olhar no espelho

O medo de revoltas de escravizados é permanente entre os donos do poder, autoridades, elite e proprietários de terras, ainda mais depois da bem-sucedida experiência haitiana que, em 1804, estabelece seu governo, depois de expulsar e/ou assassinar seus algozes, na primeira e única revolução negra, por independência e liberdade, vitoriosa.

Assim, passado o choque de Carrancas, em 10 de junho de 1833, soma-se ao temor de rebeliões africanas o desejo de revanche das elites escravocratas, que fazem produzir quatro projetos de lei na Câmara dos Deputados para o julgamento de crimes cometidos por escravizados.

Todas as propostas antecipam o texto da Lei nº 4, de 10 de junho de 1835, uma jurisprudência específica para “punir a rebeldia escrava” pelo exemplo. Em outras palavras, que determina a pena de morte para pessoas escravizadas envolvidas no homicídio de seus escravizadores e familiares.

Pena de morte

Para o historiador João José Reis, estudioso das rebeliões negras da Bahia na primeira metade do século XIX, a Revolta de Carrancas “teve influência sobre a repressão que se seguiu quando da Revolta dos Malês”, em 25 de janeiro de 1835. 

A implementação da pena de morte aos negros, criada imediatamente após a Revolta de Carrancas, acontece meses depois da Revolta dos Malês. Mas José Reis observa diferenças entre as rebeliões do sudeste e do nordeste:

 “A maior rebelião escrava da província de Minas Gerais, que amedrontou a elite escravista do sudeste, contou com a participação de cativos de origens diversas: minas, angolas, benguelas, congos, cassanges e moçambiques. Escravos falantes de bantu e crioulos – nativos e/ou filhos de escravas com brancos – também tiveram um envolvimento significativo”.

Em outras palavras, a revolta uniu pessoas escravizadas de diferentes origens com uma mesma finalidade: a liberdade e a posse de terras.

Em Salvador, na Bahia, na Revolta dos Malês, teve outra concepção, como explica o historiador:

“Os envolvidos eram todos africanos natos e concentrados em torno de alguns grupos étnicos – ou nações africanas -, em particular os nagôs (falantes do iorubá). A religião, o Islamismo, teve um papel central na sua concepção e encaminhamento”. 

Fatos & boatos

Desde o início do século XIX, a Inglaterra pressiona as nações pelo fim do regime escravista. E lugares como o Brasil – estruturados a partir da monocultura, do latifúndio e do trabalho escravo – resistem em aderir ao sistema de trabalho livre.

O período regencial, na década de 1830, por conta da abdicação de D. Pedro I, é marcado por muitos movimentos contestatórios entre a classe política.

Neste cenário, populares e escravizados protagonizam levantes com pautas as mais diversas, mas a sede por liberdade está no coração de todos.

Mas o que exatamente causa a Revolta de Carrancas? 

Qual é o estopim da rebelião?

A resposta deveria ser simples. Mas não é! E o motivo o mesmo vivenciado neste século XXI: os fatos, os boatos, as mentiras, as notícias falsas, chamadas nos tempos atuais de fake news.

Fato: Dom Pedro I abdica do trono em 7 de abril de 1831. O país é governado por regentes. Duas grandes correntes das elites políticas, escravagistas, disputam o poder: os liberais moderados e os caramurus. 

Boato: Em julho de 1831, os escravizados de Carrancas ensaiam uma tentativa de revolta contra seus senhores, movidos por rumores de que Pedro I, ex-imperador do Brasil, os queria livres. 

Fato: O vigário da Freguesia de Carrancas, Joaquim José Lobo, é acusado de persuadir os escravizados com tais promessas. Mas tudo não passa de boato. Mesmo assim, o vigário é preso.

Fato: Em 22 de março de 1833, acontece a Sedição Militar ou Revolta do Ano da Fumaça. Os caramurus militares que defendiam a volta de D. Pedro ao trono – dão um golpe e depõe o governador, assumindo o poder em Ouro Preto, então capital da Província de Minas Gerais, durante dois meses.

Boato: O escravagista Francisco Silvério, em 1833, espalha o boato de que os caramurus aboliram a escravidão em Ouro Preto

“O boato veiculado por Francisco Silvério de que os caramurus aboliram a escravidão em Ouro Preto caiu como um rastilho de pólvora nas senzalas, na medida em que foi difundido por Ventura Mina. Os escravos de fato acreditaram que ali na região de Carrancas os liberais moderados os escravizavam ilegalmente.”

– historiador Marcos de Andrade

Fato: Em 13 de maio de 1833 é deflagrada a Revolta de Carrancas, mas a imprensa e o Parlamento silenciam a respeito e a rebelião dos escravizados de Minas Gerais é, praticamente, escondida da história do Brasil. A documentação mais importante sobre ela, os “autos-crime”, está no arquivo do Museu Regional de São João del-Rei, interditado para consulta, devido ao precário estado de conservação.

José Mina, um dos integrantes da Revolta de 13 de maio de 1833, em depoimento, conta que, de fato, a insurreição estava sendo planejada havia dois anos por Ventura Mina, Joaquim Mina, Jerônimo e Roque Crioulos.

O livro Revolta de Carrancas: o silêncio ao redor, do historiador Joaci Pereira Furtado, reconstitui os fatos ocorridos em 13 de maio de 1833, a partir da pesquisa de Marcos Ferreira de Andrade, da Federal de São João-del-Rei e do processo judicial que sentenciou os revoltosos.

O mentor, um homem branco

Em praticamente todos os depoimentos contidos no chamado “Processo dos Junqueiras”, tanto de rebelados como de testemunhas locais, Francisco Silvério Teixeira é citado como o mentor e incitador da insurreição

Francisco Silvério Teixeira, homem branco, 73 anos, casado, pai de 14 filhos, era negociante e fazendeiro no Termo de Campanha. Transitava pela região e tratava Gabriel Francisco Junqueira como “compadre”. Tinha livre acesso à Fazenda Campo Alegre.

De acordo com documentos analisados pelo historiador Marcos de Andrade, Silvério, de verdade, era inimigo dos Junqueira, monarquista, e aliado dos militares, os caramurus, que haviam tomado a província em 1831. 

“Silvério precisava circular pelas estradas da região, tinha uma demanda antiga contra alguns proprietários da Freguesia de Carrancas e consegue a liberação de uma estrada justamente durante a Sedição”. 

Na opinião do historiador, não há dúvida de que o rumor teve “um papel crucial na Revolta” por conta “da expectativa de liberdade”

Do ponto de vista histórico, sabemos que os caramurus pertenciam à elite escravista. Inclusive o Francisco Silvério Teixeira, o autor do boato, possuía 19 escravos. No caso dele, parece que foi mais uma estratégia para pôr fim ao domínio da família Junqueira e seus aliados na região”.

Ódio semeado

Pesquisar, refletir, escrever sobre a Revolta de Carrancas me fez experimentar sentimentos diversos. De uma lado, sempre, a violência da escravidão. De outro, o revide dos escravizados. E, como resposta, a rebordosa dos escravizadores e seguimos neste círculo vicioso… Como dar a outra face?

Esta história – vivida em Minas Gerais, sobre a qual pouco se fala, tem requintes de perversidade, como toda a história do sistema escravocrata, que não poupa ninguém… As estatísticas contam da idade de pessoas de origem africana na África e no mundo que têm suas vidas ceifadas nos dias atuais!

Tudo isso me fez lembrar do livro e do filme O Ódio que você semeia, que fala da filosofia do rapper Tupac, nascida da sua vivência periférica, que escancara as mazelas geradas pelo racismo e os impactos que afetam a trajetória dos corpos negros desde a sua infância. É para ler e/ou assistir em família, valendo uma boa conversa. Acesse o link aqui.

A Revolta de Carrancas tem tudo a ver com o ódio, com a intolerância, e nos convida a refletir como sairemos do vício para a virtude… Nossa alma sabe que tudo é circular. Este é um aprendizado dos nossos ancestrais, está em nosso corpo-território. É tempo de escolhermos onde queremos estar em nossa plenitude, como poderemos voltar a vir a ser.

• • • • •

Fontes: Infoescola, Brasil de Fato, Wikipédia, Amazon, artigo A pena de morte e a revolta dos escravos de Carrancas: a origem da “lei nefanda” (Revista Tempo), de Marcos Ferreira de Andrade; Pena de Morte no Brasil, lei de 10 de junho de 1835, livro Revolta de Carrancas: o silêncio ao redor, de Joaci Pereira Furtado

Escrito em 31 de março de 2025

Compartilhe com a sua rede:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *