Mais que um simples penteado, que ser diferente, “exótico”, em cabeça de gente preta, tranças guardam poder e gritam existência.
Manipular o cabelo com tranças é técnica histórica, presente em muitas nações africanas. O princípio é simples, único, entrelaçamento de três mechas de cabelo a partir do couro cabeludo. Mas o simbolismo vai além do movimento e da beleza, representa poder, luta, resistência ostensiva, informação, sistema de linguagem.
As tranças existem desde antes de Cristo (a.C.). Difícil dizer há quantos mil anos. Mas Cleópatra – negra que teve sua cor roubada -, que viveu entre 69 a.C. e 30 a.C, esbanjava sua riqueza fazendo tranças até com fios de ouro – no Antigo Egito, as tranças eram um modo de os poderosos ostentarem sua condição econômico-financeira.
Embora seja forma de arte e moda feminina, sempre foi usada por homens em algumas regiões da África. Os homens do tempo de Cleópatra, por exemplo, trançavam a barba para indicar proximidade, proteção das divindades mitológicas.
No Museu Egípcio do Cairo é possível encontrar uma peruca toda trançada, do século 14 a.C., típica de oficiais de guerra.
Em 5 a.C., o historiador e geógrafo grego Heródoto elogiava a estética do povo que vivia ao redor do Nilo.
Existem registros de viajantes europeus que exploraram a África por volta de 1400 e relatavam, em seus diários e cartas, a beleza dos penteados de homens e mulheres nos diversos reinos.
Identidade
Em 3.550 a.C., sabe-se que o penteado era comumente utilizado como identificação das tribos na África Ocidental. As fulani, da tribo Fula, por exemplo, é caracterizada por tranças finas e têm, como diferencial, a coroa de tranças que se forma no topo da cabeça, semelhante a um coque. Já as tranças da tribo de Gana, começam finas e vão engrossando ao longo dos fios.
Cada região da África tinha seus penteados tradicionais e cada tribo sua estética particular, padrões complexos identificando status individual, idade, filiação étnica.
Alguns penteados eram utilizados apenas em cerimônias, como casamentos e ritos de passagem .A trança “Koju Soko”, que significa “olhar para o marido”, por exemplo, é usada para casamentos. Já a trança “Kolese” é ostentada em ocasiões fúnebres.
Historicamente, as tranças também serviam para informar religião, estado civil, posição social, transmitir sentimentos e enviar mensagens.
Adereços como conchas, anéis, miçangas, complementando o penteado, costumavam revelar a idade e também eram usados como amuletos.
Comunicação e fuga
O sistema de linguagem das tribos africanas, a partir das tranças, exerceu papel fundamental na comunicação entre os povos africanos escravizados no Brasil.
Aqui, a cultura africana, como todo o povo que veio do continente, recebeu a marca da “selvageria”. Costumes, religiões, culinária… Tudo passou a ser discriminado, proibido, condenado, sufocado, desvalorizado. A somar-se, ainda, a crença da branquitude de nossa incapacidade intelectual.
É interessante pensar: nosso cabelo também foi desqualificado, mas “acomodado”, “contido” em tranças, aparentemente, não representava perigo.
Assim, as tranças se tornaram o modo de contarmos de nossas dores e desejo de liberdade. Na Colômbia, as mulheres – anônimas na luta contra a escravidão – sinalizavam com seus penteados que queriam fugir e trançavam rotas de fuga para quilombos nas cabeças uma das outras. Usavam o estilo “departees” – tranças grossas e apertadas, rentes ao couro cabeludo. As tranças curvas representavam as estradas por onde iriam escapar.
Nas mesmas tranças, ainda, se escondia ouro, mensagens, sementes de arroz, feijão e milho. Ou ainda utilizadas para todo mundo ver, aparentemente como um charme a mais no penteado. Mas só aparentemente, porque a intenção era utilizá-las na roça, plantar, cultivar para sobreviver.
Orgulho de ser negro
Um salto no tempo, século XX, década de 1960. A empresa de cosméticos Fuller Brush Company, dos Estados Unidos, lança uma linha de produtos de beleza que promete “embranquecer” a população negra e acabar com a discriminação. A resposta do movimento negro americano é Black is Beautiful.
As tranças não indicam mais rotas de fuga, mas se mantêm contando quem somos. O movimento desafia não só a empresa, mas todo o sistema de segregação racial americano da época, que não permitia sequer o uso dos mesmos bebedouros, banheiros e lugares no transporte público.
A comunidade negra saiu às ruas com seus cabelos naturais, black power, trançados, ostentando o orgulho de ser negro – uma ação em mão dupla, também para desconstruir o fascínio de mulheres negras pelo cabelo liso e a pele clara.
Esse movimento se espalhou pelo mundo. Chegou no Brasil nos anos 1970 e inspirou Jorge Benjor a compor e cantar Negro é Lindo. E muitas de nós deixamos de alisar os cabelos. E muitos dos rapazes pararam de usar os cabelos rentes ao couro cabeludo…
Desafios entrelaçados
A transição para o século XXI representa outro divisor de águas na história das tranças. Em meados dos anos 2000, elas, as tranças, passam a dominar a cena, apesar de não “fazerem a cabeça” do ponto de vista da consciência racial. Viraram moda por sua praticidade, pelo leque de possibilidades, e ressignificam um de seus sentidos: se antes informavam sobre poder econômico, hoje garantem o ganha pão de muitas mulheres.
O princípio, a riqueza da cultura africana, embutida nas tranças, se perde com a massificação da escravidão, com o nascimento de escravizados no Brasil, o extermínio de diversas etnias… Mas as tranças não se perderam, ganharam novo significado, inspiraram o sentimento de pertença, o empreendedorismo e a desconstrução da ideia do cabelo negro como sinônimo de cabelo ruim. O melhor cabelo para se fazer tranças é o nosso.
A manipulação do cabelo continua a ser, para nós, uma forma de linguagem, um jeito de comunicar, de gritar, de ostentar, existir, de exigir respeito. É símbolo de luta por direitos, identidade e cidadania.
O que é nosso, é nosso
Vivemos, de novo, os anos 1960 e 1970, dos Panteras Negras, do pós Malcom X e Martin Luther King – líderes negros assassinados por lutarem por nossos direitos civis. Com ou sem apropriação cultural, nosso cabelo conta da nossa história e das nossas possibilidades.
Sobre o fato de pessoas brancas usarem tranças de origem de africana, aliás, vale refletirmos sobre o que escreve o babalorixá e antropólogo Rodney William Eugênio, autor do livro Apropriação Cultural, da Coleção Feminismos Plurais:
“Apropriação cultural não diz respeito ao que pode ou não pode ser usado. Não é sobre branco não poder usar turbante, cantar samba ou jogar capoeira. A questão da apropriação cultural é sobre uma estrutura de poder. Há um poder instituído na sociedade desde a colonização que delega aos dominantes o direito de definir quem é inferior e como se pode dispor de suas produções culturais e até de seus corpos”.
“Inteligência curta”
Hoje, nossas tranças são tema na academia. Estão nas escolas. A matemática e educadora americana Gloria Gilmer especializou-se em etnomatemática, que é o estudo das diferenças culturais nas diferentes formas de conhecimento, a partir da análise das práticas matemáticas.
E isso tem tudo a ver com as nossas tranças. Glória e seus assistentes observaram e entrevistaram cabeleireiros e clientes em salões de beleza das cidades de Nova York e Baltimore, nos Estados Unidos, para entender a lógica de se tecer tranças como um fazer matemático.
Durante a pesquisa, ela identificou e detalhou os muitos padrões matemáticos de vários tipos de tranças e como esses padrões são encontrados na natureza: os hexágonos de mosaico encontrados em tranças, por exemplo, se assemelham à carne de abacaxi e aos favos de mel nas colmeias.
Há sabedoria embutida na nossa cabeça e que se reflete nos nossos cabelos! É questão matemática, de feixe de paralelas, frações, diagonal do quadrado, altura do triângulo equilátero, proporcionalidade, formas circulares, padrões fractais, rotação, reflexão de imagens, translação, progressão aritmética.
Está tudo enraizado na produção dos nossos trançados, saberes e conhecimentos, passados de geração em geração.
A pesquisadora de relações étnico-raciais Luane Bento dos Santos é quem, no Brasil, mergulha no tema e coloca o trançar cabelos afros para além da estética, dando eco ao trabalho de mulheres negras.
Luane e Glória explicam que cada divisão de mechas capilares traduz diálogo com noções matemáticas e propõem um novo jeito de aprender, uma nova prática educativa, um novo olhar para a disciplina.
E, desse modo, pelas tranças, também, derrubamos mais uma invenção racista, a da nossa “inteligência curta”.
Tecer tranças exige destreza, cálculo, perspectiva, cuidado e um profundo senso estético. É exemplo de força intelectual, cultural, estratégica…
Uma curiosidade ancestral: as mulheres só eram penteadas por alguém mais velho que elas. Daí as jovens aprenderem os trançados umas com as outras.
…
Com a redação
Fontes: Vídeo – Comunidade Quilombola Suriname, Mundo Afrobiz
Amei o texto!
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Que texto maravilhoso!!!!
Que texto incrível, muito detalhado e rico, amei demais, obrigado Lizandra!
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