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Entre o “sagrado” e o “profano”

Mais do que sons, ritmos, cultura africana,  o tambor é nossa conexão ancestral, conexão com o divino em nós. Por isso, as aspas nas palavras “sagrado” e “profano”. Nós somos sagrados porque sagrado é o nosso autoconhecimento, sagrada é a nossa essência. Em nós, nada é profano, a não ser as religiões que profanaram o nosso existir, “abençoando” a escravização negra, nos classificando como “selvagens” e usando a violência contra os nossos corpos.

O que este artigo responde:

O que é sagrado e o que é profano?

Qual a importância do tambor na cultura africana e na cultura afro-brasileira?

De onde vem a ideia de sagrado e profano?

Qual a importância do atabaque, do tambor,  no terreiro?

É verdade que “tambores falam”?

O que o tambor tem a ver com o alinhamento dos chacras?

Mulheres podem tocar tambor?

Na batida do tambor

O tambor também é sagrado. Por meio do seu toque se emite vibrações e se estabelece a comunicação com os orixás, caboclos e pretos velhos. É ele que traz, invoca as entidades. 

E os ogãs – pessoas do sexo masculino – têm como missão tocá-los, emitir o som do couro e da madeira do atabaque que conduz ao Axé, à força sagrada das entidades, enviar os códigos, atraí-las, estabelecer a ligação com o universo espiritual.

No terreiro, o atabaque é um dos principais objetos é ponto de atração e vibração. Quem assume a responsabilidade de tocá-los, em  dias de festas e rituais, tem de passar por todo um processo de purificação – banho de ervas, restrições alimentares, de bebidas alcoólicas etc. E deve, sempre, reverenciá-lo.

Mídia original

Mas nenhum tambor se restringe ao uso religioso. Tambor é instrumento de comunicação! Os negros sabiam onde eram os quilombos pelo toque do atabaque e lá se refugiavam. E o atabaque era tocado, ainda, para comunicar dias de alegria,  como casamentos e batizados. 

No documentário A Rota do Samba de Roda, disponível no YouTube, Valmir Pereira lembra outro uso dos atabaques:  no chamamento para as lutas, nos dias de guerra e fortalecimento para o enfrentamento da realidade negra.

Aí, inclusive, a “explicação” do porque apenas homens serem consagrados e escolhidos a dedo para tocarem o instrumento: os atabaques representam os três reis da comunicação – Rum, Rumpi e Le.

Rum é o maior, 1m20 de altura, som grave, a cadência mestre vem dele, é o “puxador”. Rumpi, de tamanho médio, tem som entre o grave e o agudo, cumpre a função de proteção e tem a responsabilidade de fazer a maioria dos repiques diferenciados – com entonação forte, ele garante o ritmo e mantém a harmonia. Le, o menorzinho, com de 45 a 60 cm, emite tom agudo, faz a ligação entre o som dos atabaques e o canto.   

Os tambores africanos falam! São um meio de comunicação desde sempre. E têm códigos precisos para a transmissão de mensagens à distância.

Tocado do alto de uma colina, produz um som que pode ser escutado em uma área de até 40 km de distância. Porém, às vezes, para garantir a transmissão da mensagem, há tambores intermediários que tocam a cada 7 ou 10 km.

A linguagem dos tambores

Para realizar a função de comunicação pelos “tambores que falam”, os mais utilizados são os modulares ou os de extensão fixa – depende da etnia. Os grandes e os pequenos tambores cilíndricos – feitos com cascas de árvores cobertos por pele de antílope – se complementam. 

Os tambores africanos servem para contar histórias – passado e  presente. Eram como  “livros” – tocados/”lidos” por homens mais velhos e sábios, que se incumbiam de contar a história do seu povo.

E, ainda, “mídias” – conseguem informar  as notícias mais rapidamente do que a linguagem escrita e, muitas vezes, captam melhor o que precisa ser transmitido, porque os sistemas de escrita são pouco adequados para representar os tons graves, agudos e intermediários da língua. 

A linguagem dos tambores é eficiente – não há dúvida sobre esta questão. Contudo, é destinada aos ouvidos, não aos olhos.

Um mito ao som dos atabaques

A Escrava Anastácia, da mordaça de ferro, chamada de Dandara, a Oxum, não cedeu o seu corpo para o dono do engenho quando foi roubada e escravizada do reino de Jexá no dia de seu casamento com Oxóssi.

Os dois enamorados foram separados e nunca mais se viram. Mas, nesse dia, Dandara jurou que não cederia seu corpo a ninguém e enviou esta mensagem para Oxossi, escravizado em outra senzala, pelo som dos atabaques:

“Amor, vida, realidade, sou a mãe das águas doces, sou a senhora do ouro, sou a mãe da vida, a única mulher que ao lado de Olodumare e Oxalá, resultou a realidade do mundo. Vou me entregar a Olodumare, aos céus, a Orum invicta para você. Morro com fome e com sede, mas o meu amor por você, o amor por minha terra, o amor por Rum, Rumpi e Le, que leva essa mensagem pra você agora, vai falar que estou indo para o céu guerreando por um povo de gente sagrada.”

Leia sobre outras histórias, mitos,  sobre a vida de Anastácia, sua origem, neste site. 

Sinto, logo existo!

Esta a  ideia embutida em cada texto desta edição: “sinto, logo existo”. Até porque nossos pensamentos registram o que já foi vivido. É no sentir que acessamos novos aprendizados, que nosso corpo integral se comunica, que a Espiritualidade se manifesta em nós.

A energia dos tambores é sagrada e foi profanada pelas religiões que, na tentativa de apropriar-se, criou um período de “purificação” para contrapor-se à força dos que são considerados os primeiros instrumentos musicais do planeta.

Tambor conectado com a dança é energia de vida e expressão. O tambor estabelece a nossa conexão com o poder pessoal, para além das materialidades, das crenças limitantes. O som do tambor nos tira da racionalidade e nos conecta com o intuitivo, com o prazer. A batida do tambor tira o corpo da impotência, da impossibilidade.

Anderson Gopal, que atua como facilitador em vivências de percussão, na capital paulista, vê o tambor como “ veículo de conexão” com a nossa essência. 

“O toque do tambor nos ajuda na conquista de espaço interno para manifestação de nossa própria verdade”, afirma. “A frequência energética dos instrumentos espelha a energia das pessoas e acontece o despertar intuitivo.” 

Não por acaso, ele dá ao seu trabalho o nome de “Jornada Pulso da Vida”.

Como já escrevemos, nos terreiros, os ogãs, tocadores de atabaques, reverenciam os tambores. Mas,  fora dos terreiros, podemos reverenciá-los – como sugestão estudando mais profundamente o como este instrumento estimula o nosso viver, as nossas sensações e emoções.

Outro “controlar”

Na “Jornada Pulso da Vida”, por exemplo, o toque do tambor reverbera nos  chakras fazendo-os despertar, se alinhar, garantindo nosso equilíbrio físico, emocional, mental e espiritual.

Chakras são pontos de emissão e captação de energias conectados ao longo da coluna vertebral. Eles se relacionam com os Orixás, principalmente nos trabalhos de cura espiritual. Estão ligados pelo sistema nervoso e, principalmente, pelo Centro Coronário. Regulam o fluxo de energia vital e outras energias que ajudam a manter a saúde do corpo. 

Obaluaê e Nanã –  chakra básico, na base da espinha dorsal, ligado à reprodução e emoções sexuais

Xangô e Iansã –  chakra umbilical, de assimilação de alimentos e problemas emocionais

Ogum  –  chakra solar ou esplênico, ligado ao baço e porta de entrada principal para a energia vital

Oxum e Oxossi – chakra cardíaco, sistema imunológico e lucidez

Ibejis, Iansã e Ogum – chakra laríngeo, na altura da garganta, cuida da saúde das áreas auditivas, fonéticas e respiratórias.

Iemanjá e Oxossi –  chakra frontal, entre os olhos, responsável pelos centros superiores intelectivos e pelo sistema nervoso central

Oxalá – chakra coronário, no alto da cabeça, o mais importante de todos, que nos liga ao plano espiritual 

“O toque do tambor – ensina Gopal – tira o controle da nossa mente sobre o nosso corpo, em busca da harmonização entre razão e emoção.  ‘Tirar do controle da mente’ significa trabalhar a emoção corporal, o sentir, o pulsar, a liberação da energia vital, que é a energia sexual, que as religiões institucionalizadas ensinam que deve ser contida, quando na verdade deve ser vivida, não reprimida, porque é energia de criação.” 

É a repressão de nossa energia vital – liberada pelo toque do tambor –  que faz a gente pensar no tambor como profano, quando na verdade, ele acessa a nossa essência de vida, de criação. O tambor ativa o divino em nós, divino demonizado pela Igreja.

A ideia do Carnaval como  “festa pagã”, limitada a quatro dias, “sataniza” o uso da nossa energia vital e reduz a nossa existência, reprimida nos outros 361 dias do ano. Daí, muitas vezes, a inconsciência de nossa potência, da riqueza em nós.

A dança auxilia nessa “perda de controle”, que é libertária, porque dá uma “rasteira” na mente que tudo quer controlar, impedindo o livre sentir.

O tambor é ligado à vitalidade e à não repressão, à alegria de sermos quem somos, sabendo que somos sagrados. Nada é profano.

Por tudo isso, esta é uma edição especialíssima, pensada durante vários meses. Reúne a batida de tambor dos terreiros, dos blocos afro, das escolas de samba, dos espaços que investem no nosso autoconhecimento, no nosso encontro integral, pleno, libertário. 

Aproveitem.

Acesse os artigos desta edição.


Fontes: Carta Capital, Diário On Line, @andersongopal, Aprenda Uol, Educlub, Wemystic

1 comentário em “Entre o “sagrado” e o “profano””

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