A reconexão com o passado para construir o futuro no qual queremos existir! Superviver ao invés de sobreviver!
“Enquanto perseguirmos o padrão branco de existir, vamos continuar dando murro em ponta de faca. O que é muito potente para a construção do futuro que queremos viver é fazermos o processo de reconexão com o passado, de Sankofa, reconhecendo dentro de nós e na vida em sociedade, a potência dos valores e da cultura africana.”
– Morena Mariah
Morena Mariah se inspira em Carolina Maria de Jesus – catadora de papel que se tornou escritora – para autodenominar-se “catadora de saberes ancestrais’’. Reconhecida como estrategista cultural, pesquisadora de afrofuturismo, Morena Mariah é responsável pela criação da plataforma de educação e podcast Afrofuturo e pela expressão “tecnologias ancestrais”.
E é o pensar desta mulherista africana de 31 anos, carioca, assessora parlamentar, autista, mãe de Ayô, os seus saberes, que servirão como uma espécie de guia desta edição “Tecnologias Africanas – Afrofuturismo – Sankofa”.
a re-conexão com o humano em nós
Compreendendo as expressões:
Tecnologia – embora o senso comum associe a expressão a ‘avanços digitais’, Morena Mariah, desde 2018, contrapõe tal percepção a partir do conceito de tecnologia ancestral.
Para ela, tecnologia se refere ao estudo ou conjunto de técnicas, processos, métodos ou meios pelos quais se promove a transformação no mundo, a partir da atividade humana.
Ancestralidade se refere aos antepassados que todos nós temos.
Tecnologia ancestral se refere ao estudo do conjunto de técnicas, processos e meios pelos quais se promove transformações no mundo a partir de atividades já experimentadas que nos ajudem a transformar realidades vigentes. É uma forma ampliada de enxergar os modos de produzir a vida e de rever a ciência antiga com as lentes do futuro. É buscar no passado as ferramentas para construir utopias que nos permitam ‘superviver’ ao invés de sobreviver.
Sankofa
Sankofa é um provérbio africano dos povos Akan, um adinkra representado por um pássaro que voa para frente, mas tem a cabeça voltada para trás, com um ovo no bico, indicando o futuro.
Segundo a filosofia Akan, podemos ler esse adinkra, como o retorno ao passado, para ressignificar o presente, tecnologia ancestral do povo negro. Ou, ainda, como: nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás.
Ancestralidade como tecnologia sempre foi a realidade do povo preto. Conhecimento, história e ciência são produzidos, vivenciados e ensinados em comunidade.
Família preta ensina, através do passado, a instrumentalizar o presente, garantindo que haja um futuro. Família preta é sankofa, a relação entre tecnologia e ancestralidade tem a ver com a transformação de sankofa.
“Passamos por um processo de desumanização muito cruel, incisivo e extenso” – desde a falta de reconhecimento de nós como povo até as questões mais individuais, subjetivas. “Fomos jogados em uma sociedade que não nos quer, onde não temos os mesmos direitos nem mesmo garantia de vida”, reflete Morena Mariah.
A somar-se, ainda, o apagamento, a apropriação e a invisibilidade de nossa contribuição ao grande caldeirão cultural que é a humanidade, aliado aos processos de colonização e racismo, que comprometem nosso existir e apostam no nosso “fim”.
Compreendendo a expressão:
Cultura é um fenômeno ligado ao modo de vida e aos valores compartilhados de um grupo.
Só que na cultura africana não existe noção de “fim” – fim do mundo, aliás, é uma perspectiva ocidental:
“Somos início e meio, início e meio… Sempre encontramos novas formas de recomeçar. Não temos a esperança cristã, mas a certeza que nós faremos o futuro acontecer com as nossas mãos. E assim tem sido”, afirma Morena Mariah.
a utopia de ser negro, a partir de nossa realidade ancestral
Conectar de novo
As tecnologias ancestrais estão a serviço da reconexão dos negros em dispersão pelo mundo com o senso africano de humanidade, serve para a autocura e para nos mantermos vivos.
A reconexão com a nossa humanidade negra e com valores da cultura africana permite que se coloque em perspectiva de quais valores compartilhamos e qual modo de vida se quer fortalecer.
“Nossa cultura é nosso sistema imunológico.”
– Katiúscia Ribeiro, doutora em Filosofia
O manuseio das ervas, os processos de cura, as filosofias africanas, a capoeira, os rituais, as músicas, o parto natural, a culinária, as terapias holísticas, a dança, a oralidade, a escrita, o culto aos antepassados, os métodos de vida e de subsistência, entre tantos outros saberes nos permitiram chegar até aqui, são tecnologias ancestrais.
Acesse a edição Tecnologias Ancestrais.
Exemplos práticos
Vivendo na favela como Carolina Maria de Jesus, Morena Mariah percebeu resquícios da cultura ancestral negra, como a vida em comunidade, na organização coletiva para o cuidado das crianças:
“Em uma favela, ninguém está sozinho. As pessoas estão sempre apoiando umas as outras. Quando pensamos em família ampliada, aliás, olhamos de uma perspectiva africana de família”.
Quilombo é tecnologia ancestral. Palmares, que existiu e resistiu por mais de 100 anos, desde o início da luta negra por liberdade, logo após a escravização, era uma pequena África, autônoma, na América. Lá, aprendemos sobre convívio, estrutura econômica e social, formas de produção, de organização, de defesa, garantia de vida…
Os terreiros são espaços de re-humanização, re-aprendizado, re-conexão, mantidos pelas baianas do acarajé e tantas outras ialorixás, como Mãe Menininha do Gantois.
“As ialorixás (termo usado para denominar as mães de santo no candomblé) sempre organizaram e sustentaram a estrutura dos terreiros. Terreiros que são uma forma de organização social, mas também um mecanismo de sobrevivência”, historia Morena Mariah.
Registre-se, aliás, que “mulheres pretas são protagonistas na aplicação do conceito de tecnologias ancestrais no dia a dia, não só na liderança de terreiros e nas lideranças comunitárias, mas também nas igrejas da periferia vemos o protagonismo dessas mulheres nas estruturas de cuidado”, exemplifica Mariah.
“A chave da nossa re-conexão mora no passado. Teorizamos a partir de práticas já existentes.”
– Katiúscia Ribeiro, doutora em Filosofia
Ou como afirma Morena Mariah:
“Nossas utopias são reais porque são baseadas nas vivências do passado. A memória fortalece o futuro de mulheres pretas. Olhar o passado é tecnologia ancestral”.
Mais que blá-blá-blá
A pesquisa de Morena está muito atrelada à oralidade, para ela, também uma tecnologia ancestral:
“Enxergo a oralidade como uma tecnologia, uma mídia. E, para mim, mídia é tudo que a gente produz enquanto meio para transmitir uma mensagem. E oralidade é uma mídia que deu muito certo. Se temos acesso a tantos provérbios, sabedoria e conhecimento ancestral, é graças a essa tecnologia muito eficiente, o povo preto chegou vivo até aqui, geração por geração… Desvalorizar a oralidade é trabalhar a partir de uma perspectiva colonizadora.”
Mas a estrategista alerta para a falsa ideia de que o povo preto não deixou nada escrito e, por isso, é considerado a-histórico pelo Ocidente:
“Qualquer pessoa que estude história africana, de uma perspectiva africana, sabe que a gente tem muitos escritos. A primeira universidade do mundo é no continente africano e invenções. A escrita africana é a base do que o Ocidente entende como cultura.”
Nós fomos arrancados de África sem bagagem de mão, sem roupas nem documentos. Nossos saberes ancestrais vêm dos que vieram antes, geração a geração. Por isso estamos vivos! Eles nos ensinam sobre o tipo de ações que precisamos tomar para construir o futuro. Entender quem fomos, nos ajuda a entender quem queremos ser!
O que é muito potente para a construção do futuro que queremos viver é nos propormos a fazer o processo de Sankofa, de reconexão com o passado, reconhecendo – dentro da gente e socialmente – a vigor dos valores e da cultura africana.
Clique nos links ao longo do texto para saber mais sobre quem somos, nossa potência, riquezas, capacidades, saberes, a pujança de nossa ancestralidade que nos faz re-existir a cada dia.
Fontes: Instagram-Morena Mariah, Afrikafé – podcast, Data Labe – Códigos Ancestrais, Projeto Antirracista do RioOnWatch
Abril 2023
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Gratidão pelo texto!
Estou formentando uma Educação baseada nas tecnologias ancestrais e esse artigo abre muitas possibilidades para dar esse ponta pé! Axé