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Afrofuturismo, segundo Morena Mariah

- Primeiros Negros

Morena Mariah (Imagem: Reprodução)

Quem seríamos nós se os que vieram antes não tivessem sido raptados, traficados, violados, sem direito à garantia de existência?

A todo instante a mídia denuncia pessoas escravizadas em território nacional: no campo, na cidade, nos bastidores das grandes empresas, dos grandes shows e nas residências da branquitude…

E a imprensa gosta de classificar a situação como “análoga” à escravidão, quando tal expressão seria dispensável, até porque o que é semelhante à escravidão, é escravidão!

É loucura imaginar que hoje, como ontem, muitos dos nossos continuam a ser escravizados, do jeitinho que se “naturalizou” depois do 13 de maio de 1888.

É verdade que nossa história nas Américas tem mais tempo de escravização negra do que de liberdade – só no Brasil, pela lei, faz 135 que tornou-se proibida a escravização da pessoa.

Mas não faltam boas leis em território nacional. Na nossa Constituição, chamada “Constituição Cidadã”, no artigo 5°, está escrito:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”

E a gente pensa: se não fosse triste, seria cômico!

Nossa realidade é incontestável:

Um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de um homicídio que um homem branco.

A mulher negra recebe os menores salários de toda a população, justamente elas, que cuidam de crianças e idosos de toda cor. Justamente elas que mais abortam!

De olho no amanhã

Esta pincelada sobre a nossa história no Brasil é para pensar o futuro pelos olhos de Morena Mariah que, inspirada em Carolina Maria de Jesus – a catadora de papel, livros e cadernos que se tornou escritora -, se autodenomina “catadora de saberes ancestrais’’.

Reconhecida como pesquisadora de afrofuturismo, Morena Mariah é criadora da plataforma de educação e podcast Afrofuturo e pela expressão “tecnologias ancestrais”.

Mulherista africana, 31 anos, carioca, podcaster, mãe solo, educadora, estrategista cultural, a partir de seus saberes e estudos, defende a ideia de que “é preciso conhecer o passado e criar um presente, imaginando que é, na prática, aqui e agora, que mora um futuro bom”.

Ao se apresentar para falar sobre afrofuturismo, Mariah propõe um exercício e pede a todos da plateia que fechem os olhos:

“Imaginem o futuro daqui a 100 anos…”

Na sequência, pede a todos que abram os olhos e pergunta:

“Quem imaginou pessoas pretas, como eu, vivendo tranquilamente sua vida no futuro?

Parte da plateia levanta a mão.

Ela dá um tempo para que todos respirem e inicia sua fala de pouco mais de 12 minutos.

Do não-lugar, a possibilidade

A mãe de Morena é uma mulher preta, filha de mãe preta e pai branco, artista, que trabalhou muitos anos com televisão. O pai de Morena é um homem preto, vindo de uma família pobre e cheia de altos e baixos.

Morena cresceu e viveu essas duas realidades como filha de pais separados – entre a favela e os condomínios de classe média do Rio de Janeiro. Teve acesso a coisas que a maioria das crianças negras não tem, como literatura, música, muito próxima a pessoas conhecidas, com carreiras e trabalho consolidados.

Aos 10 anos, Mariah sentiu o seu primeiro “incômodo racial”, que nunca mais esqueceu. Estudava em um colégio particular – uma das poucas negras do lugar – e estava na aula de história:

“A professora começou a contar sobre o ‘descobrimento do Brasil’. Que Pedro Álvares Cabral chegou aqui para ‘descobrir’ o Brasil e que, após isso, pessoas como eu, negras, foram trazidas para cá como mão de obra, para dar sustentação ao processo civilizatório do país”.

Essa história fez Mariah perceber que os seus colegas de sala de aula, seus amigos e sua professora não vivenciavam a mesma experiência que ela, não partilhavam da mesma forma de existir, e imaginou:

“Se todos entrassem em uma máquina do tempo que viajasse em direção ao passado, quem eu seria chegando no Brasil dentro de um navio negreiro? Quem seriam os meus amigos? Qual papel brancos e negros exerceriam nessa história? Imaginar essa possibilidade, foi muito doloroso pra mim, porque de uma forma inconsciente eu sabia que tinha uma coisa muito errada naquela história. E o que estava errado é que eu não poderia aceitar que a história de quem eu era se limitava a ser mão de obra!”

Da dor, passados alguns anos, Mariah partiu para a ação. Começou a ler, pesquisar, em busca de uma perspectiva histórica em que se reconhecesse como ser humano. E teve acesso, primeiro, aos estudos da antropóloga americana Marimba Ani, para quem o processo de escravização das pessoas negras “é uma grande ruptura” no nosso viver”.

A filósofa brasileira Katiúscia Ribeiro segue a mesma linha de raciocínio:


“O mundo acabou quando fomos ceifados do nosso direito de sobreviver. O que é utopia para um, é distopia para outro. Pensar em futuro, em Tecnologias Ancestrais, é a nossa forma de conseguirmos nos reorganizar a partir desse futuro que mora no passado e sair da ideia ocidental de inventar algo que a gente não conhece”.

Leia e ouça na coluna Sem Mordaça, Buscar o passado e imaginar o futuro, por Silvio Almeida, filósofo e professor universitário a atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil.

O passado de presente

Nossa vida, nossa história, foi interrompida desde o processo de escravização até os dias de hoje, com os processos de encarceramento em massa, como exemplifica Morena Mariah.

“Eu não pertencia à realidade das crianças brancas da escola e do condomínio, mas também não podia ser uma preta favelada. E foi ocupando esse não-lugar que me tornei uma pessoa extremamente observadora. Comecei a imaginar.”

Leia o artigo O DNA do Colorismo.

Olhar o passado pela perspectiva da professora Marimba Ani fez Morena questionar se o banzo (saudade negra) que a gente sente vai acabar um dia e, ao mesmo tempo, a fez pensar no futuro.

E em sua jornada de cavar e catar conhecimentos, saberes, conheceu a futurologia – ciência para compreender os desafios que temos no presente para contribuir com o futuro que a gente quer viver:

“Nós negros precisamos pensar em um futuro que vá além das tecnologias, conscientes de que o futuro é daqui a pouco, daqui 10 anos, é quando meu filho nascer, é quando as crianças negras vão tornar-se adultas. No futuro, a maioria de nós ainda estará vivo”.

Recuperar e re-existir

Ao se deparar com o Sankofa – símbolo, ideograma da filosofia Kan, do povo de atual Gana, que representa um ditado que diz que “nunca é tarde pra gente voltar atrás e recuperar o que ficou” -, Morena Mariah entendeu que para falar de futuro é preciso olhar, conhecer o passado:

“A gente só sabe para onde vai quando sabe de onde veio. Sankofa ensina que é preciso saber das memórias da família, do povo preto, para se saber para onde queremos ir, o que vai ser bom, quais estratégias foram criadas pra gente chegar vivo no futuro, vivo e feliz…”

Adinkra Sankofa

Vale uma imersão nos artigos Clubes de preto, Ilê Ayiê, o mundo negro resiste, Movimentos antirracistas e Ballroom: resistência e celebração, como exercício para identificar e diferenciar os caminhos a partir dos nossos saberes ancestrais e/ou a partir da cultura ocidental a nós imposta.

Sonho de paz

Morena Mariah deu aula em favelas, trabalhou em projetos sociais, viu muita violência e assistindo uma dinâmica com crianças negras dos Estados Unidos confirmou que a violência torna impossível imaginar o futuro.

Lá, como aqui, toda criança quer um futuro sem violência, quer poder brincar na rua, correr sem ser confundida com ladrão, ter seus pais vivo, um mundo sem armas… E esses desejos só vieram à tona depois de muita insistência da professora que convidou as crianças a pensarem no futuro.

O melhor é a conclusão delas:

Diop e Théophile Obenga usaram um teste de melanina na pele de uma múmia, a arte nas paredes de tumbas, correspondências com outras línguas africanas e os testemunhos dos antigos.

Os antigos egípcios viveram muito antes da chegada dos gregos, romanos, árabes e turcos, e eram, de fato, africanos negros.

 “o futuro é uma construção possível a partir da nossa imaginação”.

“Sim!!!”, concorda Morena Mariah, otimista:

 “O potencial humano é a maior riqueza do povo preto. A gente faz milagre! Existe um caos e precisamos passar por isso para construir um futuro diferente, onde cabe todo mundo”.

Aqui e agora

Um exemplo prático de viver afrofuturista foi a construção do “Memorial às vítimas da chacina do Jacarezinho” – homenagem às vítimas da ação mais letal da polícia fluminense, com 28 mortos.

“A justificativa da polícia para entrar ali e matar é que o tráfico estava aliciando menores”, comenta Morena Mariah. “Mas nós sabemos que as forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro não estão nem aí para os direitos da criança e do adolescente”.

Para driblar essa realidade, o legislativo municipal – outro espaço de atuação da pesquisadora, como assessora parlamentar – criou uma série de indicativos para o Executivo fazer na comunidade do Jacarezinho, incluindo transferência de renda para os órfãos do massacre. 

“Essas famílias perdem renda quando um pai, um parente, morre.

Sem dinheiro em casa, ela com certeza vai acabar no tráfico.

Isso, para mim, é afrofuturismo.”

O tempo, dentro das culturas africanas, não é uma flecha lançada para frente – explica Morena Mariah. Se parece mais com um espiral, e nele vamos sempre retornar para um ponto onde um de nossos ancestrais já passaram. Seus movimentos no aqui e agora acompanham esse ritmo.

“Quando falo de afrofuturismo, o futuro é a última coisa, é a que ocupa a menor parte. Meu trabalho é levar para as pessoas um conhecimento que não é dado em lugar algum; é falar da cultura africana e afro-brasileira.”

Desenvolvimento atípico

Morena Mariah acumula – e assume na própria apresentação em @morenamariah – um diagnóstico de autismo. Durante anos, ela consultou profissionais que identificaram toda sorte de problemas com a saúde mental e receitaram remédios ineficazes até que soube que tem em sua área de superdotação justamente a comunicação.

O autismo, em suas variadas gradações, exige cuidado nas relações, no trato, no toque – Morena Mariah dribla. Só Morena sabe o custo que a sociabilização lhe causa.

Depois de pular de trabalho em trabalho, de universidade em universidade, construiu uma espécie de Escola Morena Mariah, a junção das suas formações institucionais à sua extrema curiosidade e capacidade de fazer acontecer.

Ao desenvolver o trabalho de educação em culturas africanas e mídia na favela do Alemão, Morena e o afrofuturismo se encontraram:

“Nós exibimos Pantera Negra para a molecada. No meio do filme, eu vi os meninos apontando o dedo um para outro dizendo ‘Olha lá, parece a sua prima, o seu irmão, aquele cara é igual você’. Eu entendi de que forma eu poderia ganhar aderência ao tema. Tinha um fio condutor, um canal. E como eu já estava nos estudos de mídia e comunicação há um tempo entendi que o afrofuturismo, a ficção científica, era um canal para falar das coisas que eu queria falar com aquelas pessoas”.

Mariah fala em escolas, nos cursos que prepara e ministra de forma online, em seminários.Sabe que o afrofuturismo não explica tudo, mas serve como caminho para todos conhecerem a história de pessoas negras, de comunidades negras e se habilitarem a construir o mundo que querem viver, seja trabalhando como formiguinhas, seja em grandes grupos, movimentos organizados.

O momento é de busca de saber mais e mais sobre nós!

Não deixe de clicar em todos os links ao longo do texto para saber mais sobre quem somos, nossa potência, riquezas, capacidades, saberes, a pujança de nossa ancestralidade que nos faz re-existir a cada dia.

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Abril 2023

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