Sem Mordaça • por Tania Regina Pinto*
“Mesmo na condição de escravizados, o nosso povo conseguia se organizar coletivamente, de forma solidária, reforçando um ao outro a lembrança de quem éramos em África antes do colonialismo.
A ancestralidade ancora a existência do ser sujeito negro como premissa filosófica. Aliás, existir sempre permeou os desafios da filosofia, sendo o elemento primordial que motivou pensadoras e pensadores ao longo dos seus percursos filosóficos…
Se fizermos uma análise sincera, vamos perceber, no modelo ocidental a que estamos submetidos, que quase não falamos sobre ancestralidade.
Aparentemente, a maioria das pessoas não apresenta interesse pelo tema e as outras acham que estão desconectadas de sua ancestralidade, mas se pensarmos bem, nossa ancestralidade é a vida em suas mínimas formas como respirar. ‘Ancestralizar’ é viver.”
Eu ouvi cada uma destas palavras de Katiúscia Ribeiro, doutora em Filosofia Africana. E anotei cada uma delas. Foi como renascer…
O VENTRE DO VENTRE
Quando dizem: “Eu não ando só”, eu penso: “nenhum de nós anda só”.. Mas penso também: “Quem são as nossas primeiras companhias?! Quem nos quer bem a ponto de não nos abandonar?!”
Ao longo da última década recebi um chamado sério para honrar de verdade meus antepassados e, também, reconhecê-los para além da influência genética…
Aprendi que as ações “da nossa cabeça” – sem refletir e integrar os passos, perdas e conquistas das pessoas que nos trouxeram à vida – pode nos encaminhar para o vazio de um abismo sem fim.
Olhe para dentro e por sobre os seus ombros e sinta quantos existiram para que você possa existir: 2 pais, 4 avós, 8 bisavós, 16 trisavós, 32 tetravós, 64 pentavó, 128hexavós, 256 heptavós, 512 octavós, 1024 eneavós, 2048 decavós, ancestrais. E isso só em 11 gerações!!! Cerca de 300 anos!!
(postagem de Caroline Amanda, no Dia da Energia Matriarcal que as avós nos transmitem, Dia de Nanã, em yonidaspretas)
O berço
O continente africano é um verdadeiro mosaico de culturas, tradições e etnias, refletindo uma riqueza incomparável que merece ser celebrada. Com mais de 2.000 grupos étnicos distintos e mais de 1.500 línguas faladas, África é um exemplo vibrante de diversidade e coexistência cultural. E assim somos nós.
Essa multiplicidade não é apenas uma característica fascinante, mas uma força vital que contribui para a inovação, a criatividade e a riqueza do continente.
É fundamental reconhecermos e respeitarmos essa diversidade, aprendendo com as experiências e os legados que cada grupo traz para o tecido cultural global.
Vamos celebrar a África em toda a sua complexidade e beleza, e nos empenhar em adquirir uma maior compreensão e respeito por quem somos.
E o professor Gabas Machado, de Educação para o Aquilombamento, aguça ainda mais a nossa imaginação, a partir de dados da realidade, ao propor um exercício na sua página no Instagram:
“Imagine se a África fosse vista pelo povo preto como uma só nação. Nós dominaríamos todos os esportes. Nós teríamos dois-terços das reservas naturais do mundo, 40% do ouro do mundo, 90% da prata, 20% do urânio etc… A África estar empobrecida é um projeto para manter a supremacia brankkka da Europa e dos Estados Unidos. É o projeto político que move o mundo. Uni-vos”.
Unamo-nos.
Afinal, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil é o país com mais descendentes africanos fora da África.
Amefricanidade
Ainda sobre nossas riquezas, a ativista e historiadora Lélia Gonzalez (1935-1994) nos apresenta à palavra “amefricanidade”, no livro A categoria político-cultural da amefricanidade, ao constatar o “gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma”.
Em outra de suas obras, Festas Populares no Brasil, a historiadora discorre sobre o “efeito simbólico de um extraordinário esforço de preservação de formas culturais essenciais trazidas de outro continente e que, aqui, foram recriadas sob as condições mais adversas”, salientando as conexões entre o sagrado e o profano a partir das influências afro diaspóricas.
Reis, rainhas e candomblé
Os afoxés são cortejos com a presença de reis e rainhas, que possuem estreita relação com os terreiros de candomblé de Salvador, na Bahia. E, em sua origem, referem-se a cortejos nigerianos, em celebração a Oxum – orixá associada às águas doces, à fertilidade, à riqueza e à beleza.
Em busca de um lugar de poder na composição estética das festas populares, o povo negro passou a pensar a beleza em sua dimensão política e afirmativa.
“Os afoxés, cordões, blocos, escolas de samba, frevos… antes chamados de ‘coisa de negros’ e, por isso mesmo, reprimidos, hoje fazem parte de um ‘patrimônio cultural nacional’ do qual os beneficiários não são os ‘neguinhos’, mas as secretarias e empresas de turismo” – escreveu Lélia no livro De Palmares às escolas de samba.
Nesta direção, vale lembrar toda a movimentação do bloco afro Ilê Ayê, na Bahia. Lélia Gonzalez participou do desfile no Carnaval de 1978, em Salvador, e no livro Beleza Negra, ou Ora-ye-ye-ô, conta do impacto de ver “jovens negras lindas, lindíssimas, dançando ijexa, sem perucas ou cabelos ‘esticados’, sem bunda de fora ou máscaras de pintura”, parecendo a própria encarnação de Oxum, a deusa da beleza.
Máscaras
O psiquiatra Frantz Fanon, autor de Peles Negras, Máscaras Brancas, é outro que atua no sentido de nos fazer reconhecer nossa grandiosidade, sobretudo ao pensar os efeitos subjetivos do racismo na gênese do indivíduo.
Seu livro aborda, pela primeira vez, uma perspectiva que envolve a psicanálise e a desalienação negra do complexo de inferioridade. Inspirado em um objeto recorrente nas festas populares brasileiras, as máscaras, ele estabelece possíveis relações com o mesmo objeto adotado em celebrações e manifestações culturais africanas.
Assim, bumba-meu-boi, folia de reis e outros festejos podem ser vistos, imaginados, ativados, herdados e continuados na contemporaneidade, como possíveis relações da cultura afro-brasileira.
Pretoguês
Indo além do escritor Mário de Andrade, que deixou considerável acervo de estudos e pesquisas sobre a oralidade de origem africana presente na cultura brasileira, durante entrevista para o livro Patrulhas Ideológicas, Lélia faz uma afirmação precisa, cirúrgica:
“Minoria cultural a gente não é, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português, é pretoguês”.
E o Museu da Língua Portuguesa, na capital paulista, quase 25 anos após o lançamento do livro da historiadora, ilustra a sua fala com a exposição Línguas Africanas que fazem o Brasil:
O pretoguês também se faz presente no nome de algumas comidas brasileiras, que são de origem angolana, onde se fala a língua kimbundo, como conta o criador de conteúdo Geovany Fernandes-Cattuco, em seu Instagram.
Entre elas, ele cita: Kanjika que virou canjica; kalulu, que virou caruru; munkunzá que virou mungunzá; kibebe que virou quibebe, e mokoto, que virou mocotó.
E vale saber que as religiões africanas, como o candomblé, foram fundamentais para a perpetuação linguística de diferentes povos. Isso porque o conhecimento das palavras africanas é essencial para integrar-se nessa comunidade, vivenciar seus rituais e conectar-se com a própria identidade e ancestralidade.
Matriarcas negras
Em uma sociedade concebida a partir da Europa, o machismo dá o tom. Mas o Brasil só é como é porque neste solo pisaram as matriarcas negras, seja nos terreiros de candomblé ou travestidas de beatas, em irmandades católicas como de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, bem como nas escolas de samba.
As matriarcas negras são as perpetuadoras dos valores culturais afro brasileiros. Para Lélia Gonzalez, o papel feminino passa por todas as experiências culturais e sociais do povo brasileiro.
E, no livro De Palmares às escolas de samba, tamos aí -, ela escreve que o quilombo de Zumbi forjou uma nacionalidade brasileira por construir, baseada na igualdade, um lugar para se viver.
Conveniência
Mas o princípio dos quilombos, das aldeias, com espaços comuns não alcançam o povo negro, como denuncia o escritor José Bispo dos Santos, conhecido como Nego Bispo, nas páginas do seu livro A Terra Dá, a Terra Pede.
Quilombola, ele denuncia o colonialismo presente no programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, que não levou em consideração a arquitetura do povo da favela, forjada nos usos africanos da vida na aldeia:
“Qual é a parte mais necessária de uma casa no quilombo? É o quintal… essencial porque é onde as crianças aprendem a fazer tudo. É também onde guardamos espaço para construir a casa de quem vai nascer… das próximas gerações… Se o quintal é essencial no quilombo, qual é a parte mais necessária de uma casa na favela? É a laje. A primeira laje é para o primeiro filho ou filha que se casa e a segunda é para fazer as festas… O que fez o Minha Casa, Minha Vida? Chegou às favelas e tirou as lajes das casas, sua parte mais necessária. Veio para os quilombos e construiu casas sem quintal….”
Enquanto isso, nos grandes empreendimentos de preços astronômicos, o que se oferece é área de lazer, de convivência, do tamanho de clubes, nada mais, nada menos do que quintais requintados apelidados de área gourmet, quadras etc!!!
Patrimônio marginal
Até quando se pensa na capoeira, força ancestral, defesa dos escravizados na luta por liberdade, é difícil compreender como uma atividade tida como de marginais, durante anos a fio, tornou-se Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (?!). É o caso de se perguntar de que humanidade está-se falando…
Apenas a partir da década de 1930 sua prática passou a ser permitida no país, através de uma lei sancionada pelo presidente Getúlio Vargas.
A capoeira nunca foi dança, sempre serviu à defesa pessoal de escravizados em fuga. As melodias e danças na execução dos movimentos eram preparação para a luta sem levantar suspeitas.
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E eu volto ao começo:
“Mesmo na condição de escravizados, o nosso povo conseguia se organizar coletivamente, de forma solidária, reforçando um ao outro a lembrança de quem éramos em África antes do colonialismo…”
O que aconteceu com a gente? Quando vamos despertar para a potência que é ter todos e cada um dos que vieram antes vivos em nós? A ancestralidade ancora a nossa existência. ‘Ancestralizar’ é viver.
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* Eu assino este artigo porque, muitas vezes, escrevo na primeira pessoa do singular. Mas estas linhas são de todos que eu cito nominalmente ou como fonte. Minha mesmo, só a forma de apresentar a ideia, a concepção do artigo.
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Fontes: Exposição – Lélia em nós: festas populares e amefricanidade/ Sesc São Paulo, Instagram – O espelho preto, Exposição – Línguas Africanas que fazem o Brasil/Museu da Língua Portuguesa, Caroline Amanda, Gabas Machado, Revista Serrote
Escrito em 7 de outubro de 2024