Beyoncé, a linguagem além da voz
- por Lyllian Bragança
Duas mulheres pretas. Cada uma no seu ritmo, compasso, cadência liberta-nos de toda repressão que, muitos e muitas de nós, naturalizamos
“Beyoncé: A Linguagem Além da Voz” é um artigo que mergulha na história e na influência de Beyoncé Giselle Knowles-Carter, uma das artistas mais icônicas e poderosas do mundo. Escrito por Lyllian Bragança e introduzido por Tania Regina Pinto, o texto celebra a comunicação única de Beyoncé, que vai além da voz para incluir a expressão corporal, a presença no palco e a escolha de temas que ressoam com questões de raça, gênero e identidade. Beyoncé é apresentada não apenas como uma artista, mas como uma força cultural que liberta muitos de nós das repressões naturalizadas pela sociedade.
O que este artigo responde: Quem é Beyoncé? O que Beyoncé faz de importante? Qual o impacto de Beyoncé na música e cultura? Quantos Grammys Beyoncé ganhou ? Como Beyoncé usa sua arte para comunicar questões sociais? Qual o significado da performance de Beyoncé no Coachella? O que “Lemonade” e “Black is King” representam no trabalho de Beyoncé?
Introdução por Tania Regina Pinto
Neste artigo, quem é pauta e quem escreve, pode-se dizer, se confundem. As duas se comunicam para além da linguagem escrita, falada, cantada. As duas se comunicam também por meio de seus corpos de mulheres pretas. Cada uma no seu ritmo, compasso, cadência liberta-nos de toda repressão que, muitos e muitas de nós, naturalizamos.
O artigo vai contar a história potente de Beyoncé Giselle Knowles-Carter, a cantora, compositora, atriz, modelo, dançarina, empresária, produtora, diretora e roteirista norte-americana conhecida e reconhecida mundialmente só pelo primeiro nome.
Quanto a Lyllian Bragança é – como se apresenta – jornalista por formação, sambista por adoração e co-fundadora do Coletivo Samba Quilomba, que fala de racismo, machismo e homofobia nas escolas de samba.
Beyoncé é a melhor performer feminina, a mais icônica, dos últimos 30 anos – a classificação é da Forbes, a mais importante revista de negócios e economia do mundo, edição de março de 2022.
O traço definidor de Beyoncé? Poder de estrela – reconhece a revista, utilizando como exemplo a sua lendária performance no Coachella Valley Music and Arts Festival 2018:
“Quando ela está no palco, o mundo inteiro se fixa nela! Ela tem o tipo de poder de estrela geracional de um Mick Jagger ou Prince. Combine isso com seu renomado perfeccionismo e ambição e você terá a estrela pop inquestionável de sua geração”.
Como cantora, é detentora de 28 Grammys, a maior premiação da indústria da música, 25 de carreira solo e três como integrante do grupo Destiny Child, de rhythm and blues, do início de sua carreira.
Em 27 de março de 2022, passados mais de dois anos longe dos palcos, Beyoncé aparece em sua plenitude na abertura performática do Oscar, a maior premiação do cinema mundial, interpretando Be Alive, canção original de sua autoria em parceria com Darius Scott, do filme King Richard: Criando Campeãs.
O longa conta a história dos pais de Vênus e Serena Williams para transformá-las nas mais importantes atletas da história do tênis e valeu o Oscar de Melhor Ator a Will Smith. Beyoncé não conquista nenhum prêmio, mas esta foi apenas a sua primeira indicação, o que já é um feito e tanto!
Poder de estrela
Beyoncé Knowles nasce em Houston, Texas, em 4 de setembro de 1981. Sua mãe, Tina, afro-americana de Louisiana, é figurinista e estilista de cabelo. Seu pai, Mathew, é empresário – cuida da carreira da filha até 2011 – e executivo musical, também afro-americano.
Beyoncé em campanha para Ivy Park (Imagem: Adidas)
Quando inicia sua carreira, ela conta 7 anos de vida e participa de um show de talentos interpretando a música Imagine, de John Lennon. E vence! Na época, o jornal local, Houston Chronicle, a coloca como a candidata da região ao prêmio de artes The Sammy.
Mais tarde, no início dos anos 1990, Beyoncé faz parte do coral da Parker Elementary School e conhece, durante uma audição para um grupo feminino, LaTavia, uma das precursoras do grupo Destiny Child.
A realeza
Patriarcado e racismo fazem da artista um corpo em movimento, sem amarras ou armaduras. Não demora, Beyoncé entende o que deve fazer para romper com o sistema: erguer seu próprio império! Ela sabe que suas verdades, as pautas mais importantes da sua vida, só terão eco se o poder estiver em suas mãos. Caso contrário, terá sua vida, seu talento, apropriados.
Em um mundo que determina como belo a brancura; o corpo magro, de poucas formas, e os cabelos lisos sem volume, não haveria espaço para a abundância de uma existência liberta de mulher preta, a não ser que ela fosse a rainha, dona de sua voz e de seu corpo!
E é esta potência integral que vem à cena no seu corpo que dança, requebra de forma natural, orgulhosa das próprias curvas e dos adornos que revelam influências de outras mulheres pretas de sua ancestralidade.
Beyoncé (Imagem: Disney Plus)
Beyoncé eclode em uma contra-narrativa ao que estava determinado pela branquitude, pela sociedade, pelo mundo, e se nega a ficar naquele lugar único reservado ao povo preto.
Vale lembrar a escritora, socióloga e filósofa Lélia Gonzalez que aborda muito bem questões como o espaço pré-determinado para nós mulheres pretas, da doméstica, e da Rainha apenas no carnaval.
Do lugar único – para a manutenção de poder sobre os corpos pretos -, restaria, a nós, silenciar, calar e seguir sendo tratadas como ‘objeto de cama e mesa’. Só que ao recusar este não lugar, a negação da nossa humanidade, acontece um reencontro ancestral que cria – para ela e para todas nós – um lugar de fala, para além da voz. Em Beyoncé, também, ganham voz e ecoam as nossas pautas identitárias, o que precisamos, o que queremos.
Força e poder
Em 2001, o trio Destiny Child estreia com um álbum que alcança o primeiro lugar na Billboard 200, com 663 mil cópias vendidas! No clipe, Beyoncé Knowles, Kelly Rowland e Michelle Williams têm uma interpretação arrebatadora, de força e poder, como “grandes sobreviventes”. Não por acaso, este é o nome do álbum, Survivor!
Quatro anos depois, em 2005 o grupo anuncia na turnê Destiny Fulfilled… And Lovin’It, em Barcelona, que todas vão seguir carreira solo.
Na vida, elas seguiram amigas. Kelly e Beyoncé, inclusive, criaram a Survivor Foundation, em 2005, após a passagem do furacão Katrina nos estados de Louisiana, Mississippi e Alabama, ao sul dos Estados Unidos.
Juntas, também, seguem apresentando-se em shows, como o Coachella Valley Music and Arts Festival 2018.
Como não ser…
Como atriz, Beyoncé empresta seu corpo e sua voz para o cinema ao viver a história de outras mulheres pretas e cantoras como ela. E chamo atenção para o filme Cadillac Records, de 2008, dirigido por Darnell Martin.
Nele, ela interpreta a cantora de jazz Etta Jones, uma mulher preta de pele clara, criada no Harlem, no início do século XX, uma época em que a segregação racial nos Estados Unidos era lei.
Etta brilhava como artista, mas rejeita sua própria existência. Entre seus problemas pessoais, a dificuldade de se aceitar, de se reconhecer como mais que um corpo.
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Isso não a impede de se apaixonar por um homem branco, judeu, que a ama tabém, mas é casado. Ele cria a gravadora Cadillac Records e abre espaço para pessoas pretas de talento. Ele a auxilia bastante na carreira, mas todo o tempo ela resiste em aceitar o que lhe é dado como manifestação de amor.
Etta viveu de 1928 a 2001, mas me lembra Natália Deodato do BBB22, o reality show da Rede Globo. Mineira de Sabará, ela tem 22 anos, é modelo, promotora de eventos, designer de unhas, mas rejeitada, tem ataques de tristeza e fúria. Assim, de um lado, escancara toda a dor que sente pela falta de atenção e de carinho e, de outro, se submete, faz de tudo para ter atenção.
É a mesma solidão da mulher preta! Que não é uma criação nossa! Além da mestiçagem nos tirar o amor próprio, nos faz renegar o amor que vem do outro, mesmo sem saber.
Corpo político
A diva é política e resistência. Em fevereiro de 2016, na apresentação do NFL Super Bowl 50, ela trouxe para o centro das atenções todos os simbolismos da negritude com uma apresentação arrebatadora de Formation, a faixa final e uma espécie de resumo do álbum Lemonade.
As mídias tradicionais, no Brasil, deram ênfase ao fato de os conservadores norte-americanos (temos muitos aqui iguaizinhos) não terem gostado da apresentação por, didaticamente, contar o que é ser negro – extermínio e resistência – nos Estados Unidos da América.
A escolha do dia para o lançamento do videoclipe Formation já foi um ato de ativismo puro: 6 de fevereiro de 2016, que coincide com o aniversário de Trayvon Martin e Sandra Bland, pessoas negras que morreram vítimas da brutalidade policial no país.
E no refrão estão todos os tópicos que Beyoncé aborda no álbum, para além da brutalidade policial, como a subversão dos papéis de gênero, sua ancestralidade, origens, irmandade e ênfase na representação de indivíduos afro-americanos.
Quadro a quadro
Nova Orleans é usada como plano de fundo de todo o Lemonade e já no início do vídeo, aparece a cidade arrasada pelo furacão Katrina, que deixou 80% da cidade submersa, atingindo principalmente a comunidade negra, que foi completamente abandonada pelo governo.
O empoderamento negro explícito na letra de Formation, abre margem para a construção do que viria a seguir na história do álbum. No momento em que Beyoncé canta: “Meu pai do Alabama” e em seguida: “Minha mãe da Louisiana”, quadros rápidos são expostos no vídeo. Nestes quadros, tanto o pai, quanto a mãe aparecem como pessoas da realeza, poderosas. Nada da visão hollywoodiana do negro escravizado e trabalhador de plantações, incapaz de promover mudanças.
E ela cita na letra da música:
“Eu posso ser um Bill Gates negro em construção!”
Um outro aspecto social que aparece no vídeo de Formation diz respeito ao Mardi Gras Indians, um “carnaval negro” característico de Nova Orleans, onde pessoas se fantasiam e saem as ruas. Mas a afirmação do amor à cultura negra se constrói durante todo o vídeo, como o cabelo afro da filha.
Enquanto canta “eu sonho, trabalho duro, luto até conseguir“, aparece uma fotografia de Martin Luther King com a legenda More Than A Dreamer, referenciando o discurso de 1963, “Eu Tenho um Sonho”.
Apesar do racismo ainda prevalecer nos EUA, a Lei dos Direitos Civis de 1964 e os Direitos de Voto de 1965 foram aprovados como resposta à luta constante do povo negro. Nas palavras da própria diretora do vídeo, Melina Matsoukas:
“Formation mostra em sua mensagem que triunfamos, sofremos, estamos nos afogando, sendo derrotados, dançando, comendo, mas acima de tudo, ainda estamos aqui!”
Fácil entender por que os conservadores norte-americanos não gostaram da apresentação e esta foi a notícia na grande imprensa. Beyoncé, por si só, é uma afronta.
Imagino eles se perguntando:
Como ela ousa se colocar e colocar outras mulheres pretas sob o olhar mundial, dançando e cantando, explicitamente, a história da opressão e da resistência negra?
Sempre ousada
Sua mensagem foi ouvida por, no mínimo, 5 milhões de pessoas, já que este foi o número de cópias vendidas no mundo todo entre 2016 e 2021.
Passados cinco anos, seu sexto álbum de estúdio, continua atemporal e icônico. E já faz parte da história da indústria fonográfica, reacendendo as características de um material conceitual de sonoridade única.
Com Lemonade, Beyoncé se torna a primeira mulher a listar 12 ou mais músicas na Billboard Hot 100 ao mesmo tempo. Sem contar o novo recorde para a voz de “Single Ladies” – ela supera 72 milhões de cópias vendidas na carreira solo. Os números são de 2021.
Na contramão dos conservadores
Lemonade é um dos álbuns que mais recebeu críticas no mundo por ter ampliado as fronteiras do que pode ser interpretado, ressignificado… E ela esteve à frente de todo o processo: direção, roteiro, composição.
Através das 33 críticas que compuseram a avaliação do disco no Metacritic, o Lemonade, com 92 pontos no Metascore, é, até agora, o álbum pop mais bem avaliado do site de críticas.
Dentre as avaliações, a Pitchfork, um dos periódicos mais críticos na área do entretenimento, definiu a obra como “um álbum deslumbrante, em que ela explora sons que nunca fez antes”.
Seu trabalho detém a maior semana de streaming de todos os tempos para um disco de R&B feito por uma mulher e ela é uma das maiores representantes do gênero.
E se supera…
Beyoncé, mais uma vez, surpreende! Depois de cancelar a sua participação no Coachella Valley Music and Arts Festival de 2017, por estar grávida, no ano seguinte, aparece impecável no palco para conquistar mais um pioneirismo, a de primeira mulher negra escolhida como atração principal do evento desde a primeira edição em 1999!
No seu espetáculo, um tributo à Nina Simone, uma reunião do seu antigo trio, o Destiny Child e referências aos Panteras Negras.
Colorismo e amor
Não posso fechar este texto sem falar da canção Brown Skin Girl, uma exaltação aos mais variados tons de pele, ao amor entre mulheres pretas, e de mães e filhas.
“Garota de pele marron
Sua pele é como pérolas
A melhor coisa do mundo
Nunca troquei você por ninguém (…)
Posa como um troféu quando a Naomi chega
Ela precisa de um Oscar por aquela pele negra
Bonita como a Lupita, quando a câmera se aproxima (…)
Acho que esta noite, ela poderia fazer suas tranças
A melanina é muito escura para ofuscá-la
Ela fica na dela e mexe o quadril
Ouro de 24 quilates, certo (…)”
Para muitos isso pode não ser nada, mas em um país onde o colorismo nos divide, como diria a filósofa, Sueli Carneiro, é impossível não perceber, na construção da música, a compreensão de que os vários tons da nossa pele não nos fazem menos ou mais pretos. Sempre somos vistos como pretos pela elite mundial.
Outro ponto final para este artigo é todo o trabalho memorável envolvendo ‘O Rei Leão’. Em Black is King, escrito, dirigido e produzido por Beyoncé, e exibido pela plataforma streaming da Disney, significados, cores, luzes, natureza, pessoas, tudo é mostrado de outro ponto de vista.
O ponto de partida é a África, berço da nossa ancestralidade, com uma valorização dos nossos antepassados sem precedentes, e que nos arrebata.
Chorei, e ainda choro quando vejo, pois me reconheço nas músicas, nos clipes, e mesmo vivenciando no meu dia a dia o capitalismo nos impondo limites. No filme sabemos de onde viemos e podemos vislumbrar onde vamos chegar.
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Fontes: Claudia, Portal Pop Line, Track List, Vogue, Nerd Site, Revista, Vagalume
Lyllian Bragança é jornalista por formação e sambista por adoração. Aos 18 anos começou a trabalhar com eventos, o que lhe deu oportunidade de conhecer a área de jornalismo. Em 2004 ela parte para a formação academica, e em 2007 se forma como jornalista. Suas viagens lhe deram grande oportunidade de, além de levar a cultura popular, também entender seu lugar na sociedade. Então, em 2020, surge o Coletivo Samba Quilomba, e a partir daí as perceptivas enquanto mulher, preta e sambista, ganham outra amplitude.
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