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De feminista a mulherista

Sonia Abike Ribeiro, ao fundo imagem em preto e branco do quilombo Canguçu (Imagem: Primeiros Negros | Quilombo Canguçu)

“Eu tenho o compromisso ancestral de dizer que mulheres e homens, negras e negros, se organizaram, lutaram, perspectivaram uma possibilidade de co-existir, fazendo contraponto a esta lógica estruturante, ordenada por por um pacto hierárquico narcísico da branquitude que permanece até os dias de hoje.”

O que este artigo responde:
A planta da maconha pode deter as mudanças climáticas?
A maconha pode salvar o mundo?
O que a maconha tem a ver com efeito estufa?
Plantar maconha pode ser um bom negócio para o Brasil?
Qual o papel ecológico da maconha?
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Por Sonia Abiké*

“…Que o cajado seja sempre a circularidade… Nós somos essa continuidade de circularidade. Por isso estamos aqui, trazendo as nossas historicidades e, dentro das nossas historicidades, uma perspectiva de caminhada, um projeto muito bem organizado e estruturado que começa nos porões dos navios negreiros.

“Eu tenho o compromisso ancestral de dizer que mulheres e homens, negras e negros, se organizaram, lutaram, perspectivaram uma possibilidade de co-existir, fazendo contraponto a esta lógica estruturante, ordenada por por um pacto hierárquico narcísico da branquitude que permanece até os dias de hoje.

“Eu sou uma mulher de terreiro, uma mulher quilombola. Nasci no 4° distrito de Pelotas, em Canguçu, uma comunidade negra rural, atual Quilombo de Moçambique. Minha família sai do quilombo, migra para Porto Alegre e hoje fazemos parte também de um quilombo urbano chamado Quilombo Lemos.

Quilombo do Canguçu (Imagem: Divulgsção)

Quilombo do Canguçu (Imagem: Canguçu Online)

“Estou socióloga pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e estou mestra em extensão rural. Sou ativista da luta antirracista do Rio Grande do Sul.

“Me iniciei na casa de mãe Maria da Oxum. Primeiro na umbanda, depois no candomblé. E sou muito grata àquele micro território onde mãe Maria já organizava mulheres na luta negra no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. E já trazia uma perspectiva de organização a partir das ciências e das filosofias africanas.

Somos o povo negro!

“Eu bebi na fonte do feminisno negro e hoje eu estou mulherista africana.

O que é ser mulherista africana? É reconhecer o papel social, político e espiritual organizado por mulheres negras no período da escravização e da pós-escravização. A nossa luta é anterior à luta organizada pela escritora francesa Simone de Beauvoir. 

“A nossa luta acontece a partir das nossas comunidades quilombolas, das nossas comunas como os terreiros, por dentro dos clubes sociais de negros e negras, por dentro das irmandades católicas, onde mulheres negras eram matrigestoras de uma organização social e política negra.

“Quando o Estado chega nas comunidades, nas favelas, nas nossas vilas,  bate na cara de homens negros e de mulheres negras… Então, nós precisamos edificar a nossa luta como raça

“A doutora Clenora Hudson-Weems – que cunhou a referência do Mulherismo Africana e escreveu diversos livros sobre o tema –  afirmou que as mulheres não precisavam trazer outras experiências a não ser olhar para as experiências das mulheres negras no período da escravização e da pós-escravização.

Retrato Preto e Branco da Doutora Clenora Hudson

Drª Clenora Hudson (Imagem: Reprodução)

“As mulheres negras sempre edificaram uma luta  potente de organização à frente de seu povo. Como mulherista africana, a nossa luta não é generificada (não separa homem e mulher). A nossa luta é para edificar o levante do povo negro, porque eles nos exterminam como povo. 

“Nós não atuamos com a perspectiva de não trabalhar como povo, precisamos de mulheres e homens negros para essa luta. Steve Biko, ativista anti-apartheid da África do Sul nos anos 1960 e 1970, dizia: 

 “Eles nos exterminam como povo e nós temos que nos organizar como povo. Se segmentarmos a nossa luta, não vamos edificar um caminho sócio-coletivo para desconstruir o processo nocivo que as estruturas hierárquicas da  branquitude promove com relação às populações pretas”.

“O Mulherismo Africana vem caminhando nesta perspectiva e eu conheci o Mulherismo Africana através da minha filha, Katiúscia Ribeiro, de Aza Njeri e Anin Urasse, mulheres que trouxeram essa discussão para o Brasil.

Mãe e filha posam lado a lado

Sônia e Katiúscia (Imagem: Reprodução)

“O Mulherismo Africana reconhece  o papel sócio-político-organizativo das populações negras na escravização e na pós-escravização. Nós só estamos aqui porque nos organizamos em frentes de resistência. 

“Em nenhum momento a coroa portuguesa, as igrejas, o Estado brasileiro criou perspectivas para construir uma saída para a população negra. Sempre foi a partir de nós!

“Para mim, Palmares é a nossa referência de luta. Onde teve aquilombamento, teve organização e resistência da população negra. As  comunidades quilombolas foram espaços de re-existência  e permanência do povo preto

“Nunca aceitamos pacificamente a escravização. Mas é isso que a historiografia oficial tenta nos dizer, para que não nos reconheçamos como potência de povo. Nós somos potências negras! 

“Os terreiros que se organizaram durante a escravização e pós-escravização foram espaços de resistência, de acolhimento e de construção de luta coletiva.

“Todo o processo de pesquisa que vimos fazendo desde África até hoje foi edificado pelo movimento negro educador. Eu sou cria do movimento negro educador. Negras e negros apresentaram a perspectiva social política organizativa a partir das lutas negras. Temos um papel social politico organizativo que é escondido, de acolhimento, de saúde mental. 

“Só demonizaram as nossas crenças devido ao papel social e político que têm os terreiros de matriz africana. Nós não temos religião porque temos espiritualidade. Nascemos ligados e ligadas à natureza, temos uma cosmo percepção, um cosmo sentir com a natureza.

Yeye (Imagem: Reprodução)

Yeye (Imagem: Reprodução)

“Colocar esta discussão no centro do debate é algo que nós, mulheristas africanas, estamos fazendo ao reconhecer o grandioso  papel social, político, organizativo, ambiental que veio nos nossos corpos e que a branquitude tentou e tenta invisibilizar.

“Nós, mulheres e homens, negras e negros, fizemos isso, estrataegicamente, através de organização de rotas de saída, de  muita luta, da criação de outras linguagens, outros signos de comunicação, valorizando nossas oralidades e oralituras… 

“Os pan-africanistas dizem isso. Precisamos retomar nossas agências negras. Molefi Keti Ashanti diz que precisamos retomar nossas rodas ancestrais. É dentro de nossos espaços sociais organizativos que vamos construir uma outra perspectiva de sobrevivência

“Nós estamos no Estado brasileiro como ponta e temos que reconhecer isso. A escola formal é uma das maiores construtoras do racismo, está a serviço da classe dominante e não vai trazer a nossa historiografia porque a nossa historiografia tem um papel social organizativo ambiental.

“O Estado sabe que nós temos uma saída para o povo negro. Quando estamos dentro da universidade e ela nos direciona para um único currículo, uma única historiografia, um único referencial teórico, isso é estratégico para manter o privilégio da branquitude e o nosso papel é apresentar as vastas historiografias que temos escritas, desde África até o Brasil. 

“Nós precisamos conhecer a proposta política de Abdias do Nascimento, do quilombismo; de Valdemar de Moura Pernambuco, do Rio Grande do Sul; de Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro… 

“As escrivivências de homens e mulheres negros e negras são muitas e não estão dentro da academia por estratégia  do pacto da branquitude. Mulheres e homens negras e negros edificaram a luta negra no país e deixaram como referência uma outra proposta de humanidade diante  de um projeto de desconstrução de humanidade do Ocidente para nós

“Em África, éramos povos organizados, estruturados. Quando o colonizador traz a mão de obra escravizada, escolhe uma mão de obra qualificada. Para voltarmos a vir a ser, apesar da escravização e do racismo, temos que nos incluir! 

“A branquitude fará de tudo para não nos incluir, porque não quer perder o privilégio de estar à frente deste caminho definido como sistema único, referendando uma cultura única, um modo de organização único e uma historicidade única. Precisamos questionar as verdades absolutas e provocar outro caminho ancestral para os nossos e para as nossas.

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*Sonia Abiké Ribeiro é socióloga, professora, do Rio Grande do Sul, quilombola, mulher de terreiro, iniciada no batuque, umbandista e candomblecista, mestra em extensão rural.

Fala proferida em fevereiro de 2024

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