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O que significa ser pardo no Brasil?

– Tania Regina Pinto

O que significa ser pardo no Brasil? (Imagem: Reprodução)

O que este artigo responde:
Como surge o termo “pardo”?
Qual o significado político do termo “pardo”?
Como os pardos se tornaram a maioria do povo brasileiro?
Quem são os pardos no Brasil?
Qual a importância dos pardos na criação de políticas públicas e ações afirmativas?
O que significa ser pardo no Brasil?

Somos 203 milhões, 62 mil e 512 pessoas habitando o território nacional – esta a informação mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E, detalhe, na maioria, pessoas pardas, 45,3%. Daí a pergunta, o que significa ser pardo?

A escritora e teórica Grada Kilomba, na página 18 do livro Memórias da Plantação, chama atenção para o fato de, na língua portuguesa, quase todas as expressões que se referem a pessoas africanas ou descendentes estarem ancoradas a uma nomenclatura animal, à terminologia colonial (negro/negra) e à linguagem racista comum (preto). 

“Pardo” é um dos termos ancorados na nomenclatura animal:

    • pardo, do latim pardus e, do grego, pardos, de leopardo – leão pardo, com uma cor nem tão escura nem tão clara.

Outros exemplos que confirmam a estratégia de desumanização do povo negro?

    • mestiça, palavra que tem sua origem na reprodução canina, para definir o cruzamento de duas raças diferentes, que dá origem a uma cadela ou cão rafeira, animal considerado impuro e inferior;

    • mulata, usada para definir o cruzamento entre um cavalo e uma mula, que dá origem a um terceiro animal considerado impuro e inferior;

    • cabrita, palavra muito usada, no passado em especial, para definir pessoas de pele mais clara, próxima da branquitude, sublinhando porém a sua negritude e definindo-as como animais, e

Raça e classe

A partir de 1111, nos registros da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, as crianças aparecem classificadas racialmente em cinco categorias: “preto”, “pardo”, “negro”, “mulato” e “branco”.

Contam os historiadores que o termo “pardo” ganha um significado mais abrangente com o crescimento da população livre de ascendência africana, não necessariamente miscigenada, mas dissociada da escravização por algumas gerações. 

Quer dizer, o termo “pardo” remetia à ascendência africana, “misturada” ou não, remarcava uma diferenciação social e refletia a discriminação

Desde o primeiro censo no Brasil, realizado em 1852, a categoria “raça” – branco, preto e pardo – era vista como auxiliar da categoria “condição”. Se tentava medir a população brasileira que era escravizada, a população que era liberta (parda) e a população que não tinha sido vítima da escravidão. A crença era de que as pessoas libertas não teriam vergonha de se colocar como ex-escravizadas (!?).

A ressignificação

Para mim, nunca foi “confortável” o registro como “parda” na certidão de nascimento. Mas eu nasci no meio do século passado e o nosso olhar era outro e hoje, ainda, segue diverso, o que – cá entre nós – é ótimo, em respeito à nossa humanidade. 

Eu me identifico como mulher preta. Sim, é uma escolha! Tem europeu (italiano) na minha raiz biológica. Na minha memória, entretanto, a minha vida é e sempre foi preta. Assim, me reconheço, celebro, existo, sou cidadã. 

A história, contudo, mostra que o termo é colocado em disputa todo o tempo. Daí, também, vivermos na eterna busca de nos re-encontrarmos, até porque – de novo – “negro”, “preto”, “pardo”, “mestiço” são invenções da branquitude para nos identificar. Em África, éramos simplesmente africanos.

Os intuitos de apagar a presença africana do território nacional, se fortalecem no começo do século XIX, antes da abolição da escravatura. Nessa direção, os governos e os racistas de plantão iniciaram um intenso debate sobre a modernização do Brasil e a construção de sua identidade nacional. 

Ganha força a “tese de branqueamento” a partir de um processo de eugenia, a “ciência dos bem-nascidos”, capaz de melhorar as “qualidades raciais” das futuras gerações.

Como parte dessa estratégia, se apostava na miscigenação – compreenda-se: relações sexuais do homem branco com a mulher negra – e abandono do homem negro à própria sorte.

Para ilustrar o projeto, a tela A Redenção de Cam, do espanhol Modesto Broco, de 1895, com uma anciã negra agradecendo aos céus a filha preta de pele clara, um bebê “quase branco” e o marido branco feliz com a família, foi apresentada no I Congresso Internacional das Raças, em Londres, Inglaterra, no ano de 1911.

Se acreditava que, em um século, os negros já teriam desaparecido do Brasil e os brancos seriam a maioria da população!!!

O último censo mostra que não deu certo!

Pardo não!

A ideia era “purificar”. Por isso, incomodava e preocupava a questão racial, inclusive a mistura de raças como fator responsável pela degeneração do ser humano, física e mentalmente. Na cabeça deles, quanto mais misturadas as raças, menos humanas nasciam as pessoas!

Por isso, não agradava a “categoria pardo” – ela não captava a essência que buscavam. Assim, o termo desaparece do censo de 1920. 

Mais tarde, nos anos 1930 e 1940, intelectuais começam a defender a mestiçagem como uma característica positiva e única dos brasileiros, um indicativo de que estavam investindo no clareamento da nação. De novo, não a favor do povo negro.

“É nóis por nóis”

Na mesma época, as expressões “mulato”, “negro de cor”, “escurinho”… são as as mais utilizadas pelo primeiro partido político negro do Brasil, a Frente Negra Brasileira, e pelo Teatro Experimental do Negro, projeto vanguardista até hoje referência em educação das relações étnico-raciais e de valorização do povo negro por meio da arte. Pardo nunca foi um modo espontâneo de nos referirmos a nós mesmos. 

No final dos anos 1970, com a reorganização o movimento negro e o surgimento do MNU – Movimento Negro Unificado isso começa a mudar. As questões que surgem inicialmente são: 

1) Quem o movimento negro representa no Brasil?

2) Qual é a população negra do país?

E não existia uma resposta única para cada uma das questões. 

Uma vertente do movimento afirmava que o negro no Brasil é o que se reconhece como negro, que reconhece o racismo na sociedade, que é politizado. Outra corrente defendia que a parte da população não branca deveria ser tratada como negra. 

Sempre cabe a expressão “é nóis por nóis” – muito comum nos muros e na boca de quem vive nas periferias de São Paulo – quando o assunto é a luta do povo negro.

Pretos + Pardos = Negros?

Esse momento – que avança para o início dos anos 1980 – coincide com estudos que demonstram que os índices econômicos de pardos e pretos são muito similares. Isso convence os movimentos de que o negro no Brasil é formado pelas populações preta e parda e que, mesmo que não reconheçam o racismo que sofrem, devem ser defendidos.

Tal entendimento, de que a soma de pessoas pretas e pessoas pardas formam a população negra do Brasil está no Estatuto da Igualdade Racial. na Lei Federal 12.288, de 20 de julho de 2010.

“Pretos + Pardos = Negros” é exemplo de engenharia social e política de sucesso no Brasil, uma equação com papel político relevante tanto na denúncia do racismo quanto na criação de ações afirmativas e políticas públicas, acreditam estudiosos e ativistas. Mas não resolve tudo, ainda.

Parditude

Beatriz Bueno, criadora de conteúdo digital, que assina a página @parditude no Instagram, por exemplo, entende que os pardos têm um lugar próprio ainda não reconhecido. E ela não está só nesta reflexão ou na defesa desse pensar pardo: ultrapassa os 60 mil seguidores.

Na rede social, Beatriz define seu trabalho como “escrevivência mestiça e autêntica” e chama atenção para o cotidiano das pessoas pardas, mas salienta que não é com a intenção de enfraquecer a luta antirracista:

“Quando eu falo de separar pardo e preto, estou falando de dar direito às pessoas mestiças de terem a sua identidade respeitada por completo, sobre autonomia e validação da raça mestiça (…) Não significa que eu defendo uma separação política desses grupos”.

Beatriz Bueno lança, em sua página, perguntas a serem refletidas: 

“O que você acha de negros sendo hostis com pardos? Ou deslegitimando, dizendo que somos brancos?”

“Por que as pessoas acham tão ruim se afirmar pardo ou mestiço?”

Essa, ela mesma responde: “Se afirmar uma pessoa mestiça não significa que você concorde com as violências que aconteceram em nosso país. Significa apenas que você está reconhecendo uma realidade que é imutável.”

Em um de seus posts, com foto, ela escreve:

 “Beleza natural de uma mulher parda de origem euroafrobrasileira”.

A maioria

O fato é que, de pouco em pouco, há décadas, a parcela de pardos na sociedade brasileira cresce a ponto de, em 2024, pela primeira vez, representar o maior grupo etnico racial do país. Isso, desde que o IBGE incluiu no censo demográfico o termo “cor”, na pergunta sobre identificação racial, em 1991 – antes, o termo utilizado era “raça”.

Está lá no Censo 2022 – divulgado em dezembro de 2023: entre 2010 e 2022, o percentual de pessoas que se autodeclararam pardas aumentou de 42% para 45,3%, o que corresponde a 92,1 milhões de pessoas. Já a população branca, caiu para 43,5%, 88,2 milhões. 

Vale reforçar que, pela lei, o percentual de pessoas que se identificam como pardas (45,3%) e como pretas (10,2%), juntas, formam a população negra do país. No total, 55,5% do povo brasileiro. 

A somar-se, ainda, do censo, 0,8% de indígenas e 0,4% de amarelos.

O Instituto informa que o levantamento populacional traz a percepção que cada um tem de si, o que pode variar de pessoa a pessoa, a depender de como elas veem sua origem familiar, cor da pele, traços físicos… 

Quem são os pardos no país?

A questão não está respondida! “É uma resposta difícil”, afirma o cientista político Luiz Augusto Campos, professor e coordenador do grupo de estudos multidisciplinares de ação afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ:

 “O modo como as pessoas se relacionam com essa categoria é muito complexo. Isso porque uma parcela grande da população brasileira e, também crescente, entende pardo como sinônimo de negro e se auto identifica. Outra parte opta pela categoria pardo para escapar de preto ou branco (…) E tem, ainda, o movimento mais recente dos povos originários defendendo que uma parcela importante dos pardos são de descendência indígena. Sem contar que entre esses pólos, existem outras variações, contradições… O pardo no Brasil é uma pessoa múltipla”.

A favor dos povos originários, um trecho da carta ao rei Manuel I de Portugal, em 1500, enviada por Pero Vaz de Caminha:

 “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel”.

Na atualidade, é Beatriz Bueno, do @parditude, quem ecoa os povos originários: 

“Eu defendo uma união inclusive com o movimento indígena, que o Brasil tenha um movimento racial integrado (…) Dessa forma a gente se une e respeita a diversidade e as especificidades de cada um”.

Afroconveniência

Sobre as “variações e contradições” citadas pelo cientista político Luís Augusto Campos, não se pode esquecer dos “afro oportunistas” ou “afro convenientes” que se utilizam das ações afirmativas voltadas ao povo negro para, literalmente, se darem bem.

Flávio Dino de Castro e Costa, por exemplo, se auto declarava “branco” em 2014, quando foi eleito governador do Maranhão, aos 46 anos de idade. Mas, aos 50 anos, tudo “escureceu”! Nas eleições de 2018 e 2022, sua autodeclaração étnico-racial mudou para “pardo” – e ele se reelegeu governador e, depois, senador. Na sequência, 2023, tornou-se ministro da Justiça e Segurança Pública do Governo Lula. E, em 2024, chega ao topo do Poder Judiciário “pela cota racial”. 

Queríamos uma mulher negra, mas a afro conveniência venceu e Flávio Dino entra para a história oficial como o quarto homem negro a integrar o Supremo Tribunal Federal – STF! 

Leia o artigo Afroconveniente, afro conveniência que explicita as estratégias da branquitude, de plantão ou não, para burlar as leis a favor do povo negro. 

Estratégia

Mas voltemos ao tema do artigo…

Quando o movimento negro opta por uma visão de negritude incluindo pretos e pardos, surgem diferentes campanhas de conscientização racial, uma delas é “Não deixe sua cor passar em branco”, para incentivar as pessoas a se declararem pretas ou pardas no censo. 

O movimento negro organizado entendeu como estratégico “acolher” o termo “pardo”, para que essa fatia da população fosse incluída na definição de quem é negro no Brasil e, assim, abrir a discussão sobre políticas de reparação e ações afirmativas.

A aprovação e o fortalecimento das cotas raciais em universidades públicas, por exemplo, fez com que a questão atingisse mais gente. A lei que mudou a cara do ensino superior do país foi aprovada em 2012, depois de 13 anos de tramitação no Congresso Nacional.

Tudo isso explica o aumento na proporção dos pardos no censo do IBGE, mas não só. Para Luiz Augusto Campos, há uma mudança na autodeclaração das pessoas e também no movimento demográfico: 

A população branca está diminuindo. Pretos e pardos estão em classes mais baixas e tendem a ter mais filhos. Mesmo assim, a taxa de natalidade no Brasil vem caindo em todas as populações. Está acontecendo uma mudança de perspectiva, uma mudança cultural no modo de enxergar raça no Brasil”. 

Reparação 

Nesta jornada, no século XXI, o termo tem assumido significados antirracistas, como a ideia de que é necessário conhecer a população parda para que se possa calcular a discriminação específica que ela sofre e, de acordo com resultado, pensar políticas públicas de equalização de condições.

No @parditude, um exemplo de questionamento das pessoas pardas, que costumam ter sua cor de pele questionada nas comissões de verificação de autodeclaração, na hora de ocupar vagas das universidades públicas: 

“Você é a favor que tenha um tipo de cotas separado para pessoas pardas?”

Para além da lei de cotas – mesmo com problemas -, mais que números no censo, toda a ação dos movimentos negros vem gerando frutos na luta por justiça restaurativa, a partir de políticas públicas e ações afirmativas.

Entre elas, o próprio Estatuto da Igualdade Racial, a criação de bolsas de estudo no ensino superior privado; a contratação e promoção da população negra no mercado de trabalho; os empréstimos e preferência em contratos públicos, que acabam atingindo a sociedade e o modo como se produz cultura – vide o aumento da presença negra na televisão brasileira

E, ainda, as Leis 10.639/03 e 11.645/08, que estabelecem a obrigatoriedade da inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Rede de Ensino; a Lei 12.990/14 que institui a reserva de 20% das vagas no serviço público federal para a população negra, e a Emenda Constitucional n° 111/2021 que obriga os partidos políticos a reservarem cotas mínimas para candidaturas de afro-brasileiros nas eleições para o Poder Legislativo, nas três esferas de poder. 

Pesquisas constatam que a população brasileira tem muito mais conhecimento sobre o debate racial do que tinha há dez anos. É um avanço que, contraditoriamente, se faz presente em um cotidiano no qual, cada vez mais, acontecem denúncias de racismo contra pretos e pardos.

É bom pensar no “Mito do Espelho”

No princípio havia uma única verdade no mundo: Orum ayê – “céu” e terra, duas realidades fazendo parte de um processo simbiótico, que se complementa, se retroalimenta.

Entre eles, Orum e Aiyê, havia um espelho. Tudo que se mostrava no Orum materializava-se no Aiyê. Ninguém tinha dúvida de nada. Tudo do mundo espiritual acontecia no mundo material. 

Só que um dia o espelho se quebrou, ficou estilhaçado. E, por isso, estamos impedidos de refletir a verdade. Mas podemos mudar essa história quando unirmos todos os nossos pontos de vista. O que implica, naturalmente, respeito pelo olhar do outro. 

E, no nosso caso, imersão permanente no passado de modo a encontrarmos nosso lugar, acolhendo tudo o que já foi vivido, incluindo as contradições. 

Como sugestão de leitura, para ampliar o nosso olhar, os artigos:
 O DNA do Colorismo.
Afroconveniente, afro conveniência
A cor sempre roubada
Racismo científico 


Fonte: podcast Café da Manhã, Censo IBGE 2022, livro Memórias da Plantação, de Grada Kilomba, Wikipédia – Pardo, Mundo Educação Uol, @Parditude, Poder 360, Wikipédia

Escrito em janeiro de 2024

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3 comentários em “O que significa ser pardo no Brasil?”

  1. Pingback: Silvio Humberto, do ativismo ao poder político

  2. Adriano Vieira da Silva

    Eu sou da crença que somos o que somos pretos sim, esse negócio de pardo é uma piada… O tanto que nos EUA nem existe esse termo, é preto ou branco, Bob Marley, que era filho de branco e uma mãe preta, jamais se indentificar por “pardo” mas sempre se proclamou preto e lutou por nossas origens. Tenho nojo de ter na minha certidão de nascimento “pardo” eu sou preto, meu sangue é pulsa África.

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