Futebol e Racismo
– Primeiros Negros
Jogo entre Botafogo x Fortaleza no Estádio Nilton Santos (Foto: Alexandre Cassiano | Agência O Globo)
É no esporte onde o brilhantismo, a excelência, a potência negra é como o sol, que a violência racial, muitas vezes maquiada de “recreação”, se manifesta “livre, leve e solta”!
O que podemos fazer para controlar os racistas, sua ignorância, e não nos contaminarmos por ele, alimentando o racismo estrutural, recreativo, presente no DNA da sociedade brasileira?
O futebol chega ao Brasil como um esporte de elite, excludente, amador, de brancos, no início do século XX, mas não se sustenta. Aos poucos, os negros vão sendo chamados para participar e o transformam em esporte de gente grande, de quem sabe dominar uma bola e dar espetáculo!
Leia o artigo Futebol, preto no branco.
Com todo o racismo – marca da sociedade brasileira -, os negros forçaram, impulsionaram, a profissionalização do futebol na década de 1930. Leonidas da Silva, conhecido como Diamente Negro, simboliza a afirmação do jogador negro dentro no país.
Mas sempre se pagou um preço muito alto. Os jogadores eram “propriedade” dos clubes – versão “recreativa” do sistema escravocrata. E, nas negociações, quando aconteciam, os clubes ficavam com até 90% do “valor de compra” do atleta, o que aconteceu com o meio campista Vinicius Júnior quando foi vendido para o Real Madrid pelo Flamengo.
Leia, abaixo, sobre a Lei Pelé.
“Bode expiatório”
A expressão se refere a animal oferecido em sacrifício pelo “pecado” dos homens – coisa do catolicismo, apropriada pelo futebol, que sempre responsabilizava os jogadores negros pelas derrotas ou os desqualificava nas vitórias, quando mostravam excelência, desumanizando-os.
Um exemplo é o caso de racismo recorrente contra o jogador Vini Júnior, do Real Madrid. Seu futebol é indiscutivelmente primoroso, mas o atleta tem sua saúde mental posta em xeque toda vez que entra em campo e é achincalhado pelos espanhóis.
Na Copa do Mundo de 1950, quando da derrota do Brasil para o Uruguai, na final, por 2 a 1, no Maracanã (RJ), os jogadores negros foram eleitos “bodes-expiatórios”, em especial o goleiro Barbosa, do Vasco da Gama, que sofreu os gols uruguaios e, certa vez, desabafou:
“No Brasil, a pena maior por um crime é de 30 anos. Há 43 anos, eu pago por um crime que não cometi”.
Oito anos depois, na Copa de 1958, quando o Brasil é campeão pela primeira vez, o comentário infeliz à figura de Pelé é que ele “completa a obra da princesa Isabel”! A da abolição da escravatura em 1888.
Mas voltemos à questão principal:
Como controlar os racistas e não alimentar o racismo estrutural?
Onde não existe empatia, solidariedade, civilidade, preconceito, discriminação, a alternativa é aumentar o cu$$$to da intolerância, do desrespeito, do desvario, da ignorância…
Racismo tem que custar caro para quem o pratica. Racismo, homofobia, misoginia, machismo… têm que custar mais caro ainda se a pessoa, se a instituição, quiser reforçar o seu preconceito.
Daí a importância de leis específicas para punir o crime de racismo. Daí a urgência de aplicá-las, bem como fazer cumprir a Lei 10.639, que torna obrigatório ensinar história e cultura afro-brasileira nas escolas.
Não é possível o ensino seguir baseado na história da Europa quando a maioria do povo é originário do continente africano.
Dias de mobilização
Que as datas para reforçar a luta contra qualquer tipo de racismo também representem um movimento permanente de esclarecimento sobre quem somos.
Denúncias de racismo nem sempre despertam grande atenção! Tal fato torna mais fundamental, ainda, a politização das datas que importam para o povo preto, bem como ações como as de Vini Júnior, que usa suas redes sociais como espaço de fortalecimento da luta preta por igualdade, equidade e respeito.
Leia o artigo Vini Júnior, pioneiro com a bola e para além dela, sobre toda sua, ainda, curta jornada.
Quando se analisa o histórico de buscas no Google, há sempre um pico em novembro, justamente ao redor da data que marca o dia da consciência negra, 20 de novembro, e de lembrar o assassinato do líder da resistência Zumbi dos Palmares.
De acordo com levantamento do Google Trends, Vini Júnior é responsável pelos tweets de maior repercussão e engajamento no Brasil e na Espanha em 2023 – nenhum tweet repercutiu mais do que os tweets do jogador. São dele, os três tweets de maior repercussão em língua portuguesa o tweet de maior repercussão em língua espanhola.
Floyd, divisor de águas
Nenhum evento registrado, de 2004 a 2023 (período dos dados de busca no Google), repercutiu mais sobre racismo do que o assassinato de George Floyd, no dia 25 de maio de 2020 nos Estados Unidos.
A morte violenta, desumana, do americano muda de patamar o combate ao racismo no mundo!
Floyd e, agora, Vini Júnior catalisam a energia social reprimida e provocam uma erupção que chacoalha toda a sociedade, para além dos dois casos isolados. São dois homens negros que – de modos diferentes e de continentes diferentes – expõem as milhões de humilhações cotidianas, prisões injustas, crimes de ódio que, de tão comuns, mal viram notícia.
“Democracia racial”?
Vini Júnior é um brasileiro que vive na Espanha e vem sofrendo racismo dos espanhóis. Mas o Brasil não é menos racista que a Espanha – a escravização do povo preto em território nacional foi abolida, pela lei, faz apenas 135 anos!!! E, em pleno século XXI, não são poucas as notícias de “pessoas vivendo em situação análoga à escravidão”, como informam textualmente os jornalistas.
A sociedade brasileira, é verdade, está em um estágio mais avançado no que diz respeito à legislação. A aplicação das leis, no entanto, deixa muito a desejar, ainda.
O Brasil – de acordo com o Google Trends – é o segundo país do mundo onde mais se pesquisa sobre racismo – só perde para os Estados Unidos. A Espanha está em 38° lugar. O Brasil é o 3° país do mundo onde se pesquisa mais sobre preconceito – a Espanha ocupa o 48° lugar. O Brasil está em 1° lugar no mundo na busca sobre o significado de palavras como xenofobia, lgbtfobia, gordofobia…
Caminhos abertos
O Alafia – palavra que indica a posição de ‘caminhos abertos’ no jogo de búzios, em diversos idiomas africanos -, laboratório de pesquisa que tem, entre seus projetos, o Observatório de Racismo nas Redes, monitora as redes sociais de 26 personalidades negras – artistas, intelectuais, jogadores de futebol, influenciadores -, tanto nas expressões racistas como nas reações a eles.
De acordo com seu último relatório, divulgado em maio de 2023, Vini Júnior é o mais mencionado, porque encara o racismo de frente e traz o debate para as suas páginas. E o fato responsável por esta maior visibilidade do jogador aconteceu em 26 de janeiro de 2023, quando torcedores espanhóis colocaram um boneco dele, pendurado em uma ponte de Madri, simulando o seu enforcamento.
Luta insana
O lado mais perverso de todo este embate é que o atleta ganha muito mais visibilidade por conta do racismo do que por sua atuação profissional.
O racismo ofusca o mérito, o talento, a personalidade, as conquistas da pessoa negra.
No caso do Vini Júnior, seu futebol fala por si. Mas esta não é a regra para a massa das pessoas negras que sentem o racismo todos os dias, em todos os ambientes, e que têm de lidar com ele antes de poder trabalhar os próprios méritos.
O Observatório do Racismo nas Redes acompanha também as páginas do jogador de futebol Neymar, que não se posiciona nem torna o racismo uma pauta. Mas que, mesmo assim, é vítima de racismo.
Neymar sofre ataques nas suas redes sociais, não reage e tem menos comoção e ondas de solidariedade.
O fato é que uma explosão de manifestações racistas e antirracistas acontece nas redes quando o palco são estádios de futebol. Mas isso não implica afirmar que o racismo tem dia, hora e local para acontecer. O Observatório percebe que o racismo é permanente e sistemático – negros e negras são sempre vítimas de racismo em suas redes.
Preto é preto
Não há ascensão possível que proteja do racismo. Em uma sociedade racista – que discrimina pela aparência, pelo tom da pele, pelo formato do nariz, pelos lábios, pelos cabelos, pela maneira de andar… – não há possibilidade de uma pessoa de ascendência negra esconder a sua origem. Por mais que tente!
Pelé, com sua história incontestavelmente vitoriosa no Brasil e no mundo, tentou ser ‘supra-racial’, para além da cor, mas nem no auge conseguiu tal feito. Em 1997, o então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, ao participar de um seminário internacional com representantes de países do Mercosul, declarou, para registro da imprensa:
“… existem dois pretos que são admirados por todo o Brasil. Um é o Pelé, que é o nosso rei de sempre. O outro é o rei asfalto, todo mundo gosta do asfalto. É o preto que todo mundo gosta”.
Detalhe: na época da declaração, junho de 1997, o jogador histórico, sinônimo de excelência em campo, era ministro dos Esportes do primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso!
O primeiro presidente de República preto do Brasil também tentou, mas o escritor Gilberto Freyre, ao escrever sobre futebol, comparou o esporte ao mulato – que vence usando a malícia e escondendo o jogo – e usou como exemplo “o mulatismo” de Nilo Peçanha, “até hoje a melhor afirmação na arte política”.
Luta pela abolição
Mas voltemos ao ministro Edson Arantes do Nascimento que, ainda, deixou sua marca contra a escravização no futebol, ao criar a Lei nº 9.615, a Lei Pelé, que liberta os jogadores do jugo dos clubes.
Pelé pouco se posicionava sobre questões raciais mas, antes da Lei com o seu nome, atletas eram tratados como propriedade dos clubes – suas vidas, seus passos, tudo dependia dos clubes!
O texto, sancionado em 26 de março de 1998, de fato, acaba com os “grilhões” no futebol e coloca um ponto final no “passe” – conceito jurídico que descrevia o vínculo do atleta profissional com a agremiação que o contratava e garantia a sua ‘posse’ para todo o sempre…
Sem a Lei Pelé, todo jogador era tratado como mercadoria, mesmo após o fim do contrato. Com a lei, todos passaram a procurar agentes e empresários para negociar seus contratos.
O antigo ‘passe’ foi substituído por cláusulas de indenização e compensação. E foram criadas diretrizes para a condução do esporte no Brasil, incluindo repasse de recursos e controle de doping.
Outra conquista importante da Lei Pelé foi a proteção do adolescente, com a formalização de contrato de aprendizagem, incluindo pagamento obrigatório de bolsa não inferior a um salário mínimo-hora e a duração máxima de dois anos. Após esse período, tornava-se contrato de trabalho de atleta profissional.
Quanto ao racismo recreativo, presente no futebol, Pelé, em pleno século XXI, seguiu considerando-o algo “banal”, de menor importância:
“Racismo não é só no futebol, tem em todos os setores da sociedade há muito tempo… No meu tempo jogavam jaca, manga” – comentou ao referir-se ao gesto de um torcedor que atirou uma banana, no jogador do Barcelona, Daniel Alves, durante o Campeonato Espanhol, em 2014.
Só que não! Atos e falas que expressam desprezo pela maioria da população brasileira, que é não branca, causam insegurança, geram baixa autoestima e até doenças psicológicas na esfera individual.
Acesse os outros artigos da edição “Atletas do Brasil Negro“.
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Escrito em maio de 2023
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