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José do Patrocínio, o abolicionista que proclamou a República

Um civil afrodescendente proclamou a República do Brasil, enquanto um militar titubeava sobre  a mudança do regime no Brasil. E, assim, se passaram mais de 130 anos! 

Escritor e abolicionista brasileiro José do Patrocínio (1854 - 1905). (Autor: Desconhecido - Fotografia em "História da Literatura Brasileira" (1916), de José Veríssimo (1857 - 1917) - Domínio Público)
Escritor e abolicionista brasileiro José do Patrocínio (1854 – 1905). (Autor: Desconhecido – Fotografia em “História da Literatura Brasileira” (1916), de José Veríssimo (1857 – 1917) – Domínio Público)

O civil, o vereador afrodescendente José Carlos do Patrocínio, 36 anos, de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro.

O militar, o marechal Deodoro da Fonseca, 62 anos, das Alagoas, Maceió.

Quem conta esta história é o jornalista Laurentino Gomes, no livro“1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil”.

Eram  18 horas do dia 15 de novembro de 1889 – enquanto o marechal Deodoro da Fonseca titubeava sobre a mudança de regime no Brasil -, o vereador afrodescendente José Carlos do Patrocínio proclamou a República perante um grupo reunido na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

O registro está no capítulo 2 do livro,  recheado de indicações bibliográficas.

De acordo com “1889”, o marechal Deodoro da Fonseca, doente e cansado, destituiu o ministério, desfilou com as tropas, mas não fez a proclamação formal, deixando, sem saber, o pioneirismo para um monarquista negro!

Registra a história que Patrocínio, reconhecido orador, transformou-se em republicano por pressão de seus pares. Daí ter discursado em apoio ao novo regime e ter redigido, às pressas na redação de seu jornal, com líderes republicanos, a única proclamação formal da República ouvida naquele dia.

A moção, endereçada aos “Senhores representantes do Exército e da Armada Nacional”,  anunciava que “o povo, reunido em massa na Câmara Municipal, fez proclamar, na forma da lei ainda vigente, pelo vereador mais moço (o próprio Patrocínio), após a gloriosa revolução que ipso facto aboliu a Monarquia no Brasil – o governo republicano”.

Acrescentava que os “abaixo-assinados” intitulados “órgãos espontâneos da população do Rio de Janeiro”, estavam “convencidos” de que os representantes das Classes Militares, aprovariam o ato.

Tigre da Abolição

Assim ficou conhecido o republicano de última hora José Patrocínio, orador incansável que se transformou em ícone na campanha abolicionista, intensificando os ataques à política escravocrata, em seu jornal Cidade do Rio.
Mas ele não se limitou a lutar com palavras. Foram dez anos de militância incansável na ajuda para a fuga de muitos escravos, organização de núcleos abolicionistas, fundação com André Rebouças da Confederação Abolicionista, para unir todos os clubes e associações de luta contra a escravidão no país, viagens pelo Nordeste, até o que considerou o triunfo da causa, a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.

José do Patrocínio (Ilustração: Reprodução)
José do Patrocínio (Ilustração: Reprodução)

A proclamação da Abolição, em 1884, no estado do Ceará, quatro anos antes do restante do país, é creditada à sua articulação política.

Mas a mãe de Patrocínio, nascida na costa ocidental da África, morreu em 18 de agosto de 1885, sem ver chegado o dia da liberdade para os escravizados.

Mesmo assim, Patrocínio não esmoreceu. Em janeiro de 1886, foi um dos candidatos da Confederação Abolicionista à Câmara Municipal do Rio de Janeiro e saiu vitorioso.

Lei Áurea

Chega 1888. Em 3 de maio, junto com Rui Barbosa, discursa para uma multidão pela libertação das pessoas escravizadas. Cinco dias depois, o ministro Rodrigo Silva apresenta ao Parlamento o projeto final da Abolição.

E no domingo, dia 13 de maio de 1888, Patrocínio, Joaquim Nabuco e André Rebouças levam a Lei Áurea às mãos da princesa regente, para que seja assinada.

Assim, chega ao fim, na visão dos abolicionistas, a luta pela liberdade do povo negro. E, no ato, contam alguns biógrafos, Patrocínio chorou.

“Minha alma sobe de joelhos nestes paços”, afirma Patrocínio, curvando-se para beijar as mãos da “loira mãe dos brasileiros”. Foi ele quem deu à princesa Isabel o título de “A Redentora” e estimulou a formação da “Guarda Negra”, milícia de escravos libertos, que agiam com violência nos comícios republicanos, em defesa do trono.

Hoje a gente sabe que não bastam leis!

Afrodescendente

“Se toda a propriedade é roubo, a propriedade escrava é um roubo duplo, contrária aos princípios humanos que qualquer ordem jurídica deve servir.”

Palavras que, mais que retórica inflamada, resumem a vida do abolicionista: senhor por parte de pai, escravo por parte de mãe, vivera na pele todas as contradições da escravatura.

Palavras que, mais que retórica inflamada, resumem a vida do abolicionista: senhor por parte de pai, escravo por parte de mãe, vivera na pele todas as contradições da escravatura.

Nascido em  9 de outubro de 1853 na vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes, um dos pólos escravagistas do país, no norte do Rio de Janeiro, era filho do vigário da cidade, o cônego João Carlos Monteiro, e da jovem escravizada Justina Maria do Espírito Santo.

Fazendeiro, dono de muitos escravizados, vereador, deputado provincial e filiado à Loja Maçônica Firme União, seu pai era famoso pelas bebedeiras, jogatinas e aventuras sexuais. Teve inúmeros filhos com as escravizadas.
Justina, mãe de Patrocínio, foi entregue ao padre aos 12 anos, como presente de Emerenciana Ribeiro do Espírito Santo, fiel da paróquia de Campos, dona de escravos e, segundo acreditam os biógrafos, também amante do vigário.

No Rio de Janeiro

Patrocínio aprende as primeiras letras e recebe certa proteção. Com permissão do pai – que não o reconhece como filho -, em 1868, com 14 anos, deixa o município de Campos e vai para a capital, onde começa a trabalhar como servente de aprendiz na Santa Casa de Misericórdia.

Com a ajuda do professor João Pedro de Aquino, Patrocínio entra para a Faculdade de Medicina, no curso de Farmácia e se forma em 1874. Para sobreviver, entretanto, passa a lecionar.

Em 1879, casa-se com uma de suas alunas, Maria Henriqueta de Sena Figueira, filha do capitão Emiliano Rosa de Sena, com quem tem quatro filhos: Marieta, Maceu, Job e José Carlos do Patrocínio Filho.

Jornalista e Político

Em 1881, com dinheiro emprestado pelo sogro, compra seu jornal, o Cidade do Rio. Mas todo o prestígio durante os últimos anos do Império, com a luta pela Abolição, decai após a Proclamação da República.
Sua atuação na Proclamação do 15 de novembro de 1889 não impede que seu jornal seja interditado. E ele,  deportado para Cucuí, no Amazonas, sob acusação de participar de uma revolta contra o governo do marechal Floriano Peixoto.

José do Patrocínio e Olavo Bilac (Imagem: Reprodução)
José do Patrocínio e Olavo Bilac (Imagem: Reprodução)

Com o fim da Monarquia, o “pioneiro republicano” vê sua carreira ir ladeira abaixo.

Anistiado, um ano depois, retorna ao Rio de Janeiro e mantém seu jornal como um órgão de oposição até que, em 6 de setembro de 1893, acontece a Revolta da Armada, com a Marinha rebelando-se contra o marechal Floriano.

Patrocínio publica um manifesto dos almirantes revoltosos e o presidente manda fechar seu jornal.  O jornal reabre em 1895, mas sete anos depois deixa de circular.

Pioneirismo no trânsito

Ao abandonar a política, Patrocínio torna-se um homem fascinado pelas invenções que revolucionam o mundo. Por anos, dedicou-se a um projeto de navegação aérea e construiu um dirigível de 45 metros de comprimento, o aeróstato Santa Cruz, que jamais saiu do chão.

Ele foi um dos primeiros brasileiros a importar um automóvel, da França e movido a vapor, em 1892. E também o primeiro a se envolver em um acidente de trânsito: seu carro espatifou-se de encontro a uma árvore algumas semanas após desembarcar no Rio de Janeiro.

Eterno escritor

Patrocínio manteve árdua atividade literária, principalmente como romancista e jornalista. Seus romances mais conhecidos são: Os retirantes, de 1879, e Pedro Espanhol, de 1884.

Vale registro também Motta Coqueiro, romance anti escravocrata que transita entre o estereótipo do escravo demônio, atribuído a um carrasco negro, e do escravo fiel.

Como outros escritores abolicionistas, Patrocínio representa os escravos como uma combinação de culpa e inocência; culpa porque contaminam seus senhores com sua imoralidade, e inocência porque a causa de sua imoralidade é a escravidão.

ABL

José do Patrocínio foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras – ABL, onde ocupou a Cadeira n.º 21, cujo patrono é Joaquim Serra. ABL, que já foi de Machado de Assis e hoje é de Gilberto Gil.

No dia 29 de janeiro de 1905, aos 51 anos, sentado à sua pequena escrivaninha no modesto barracão em que vivia no bairro de Inhaúma, no Rio de Janeiro, escreve suas últimas palavras:

“Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que têm conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar depois de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com carga para uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do atoleiro…”

Patrocínio não termina a última palavra nem a frase – um jato de sangue jorra de sua boca. O Tigre da Abolição, pobre e desamparado, morre, imerso em dívidas e mergulhado no esquecimento.


Fontes: EBiografia, EducaçãoUol, Diário da Região, Todo Negros do Mundo, A Cor da Cultura, Letras UFMG, Livro: “1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil”, de Laurentino Gomes (págs. 61, 62, 218, 219, 220)

Escrito em dezembro de 2021

4 comentários em “José do Patrocínio, o abolicionista que proclamou a República”

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  4. Fantástico conteúdo. Tenho as publicações de Laurentino Gomes. Parabéns pelo conteúdo esclarecedor!

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