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Machado de Assis afrodescendente

O maior escritor e cronista brasileiro de todos os tempos é negro. O criador da Academia Brasileira de Letras é negro. Mais um gênio que teve a cor roubada.

Machado de Assis (Imagem: Campanha #MachadodeAssisReal/Faculdade Zumbis dos Palmares)

Dez romances, duzentos contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e sonetos, mais de 600 crônicas e cartas pessoais, muitas cartas. Esta a herança, o legado, de Joaquim Maria Machado de Assis em 50 anos de vida intelectual. Seus livros foram traduzidos para 14 idiomas.

O mesmo que fundou a Academia Brasileira de Letras, a ABL, e ocupou a cadeira nº 23, é conhecido como ‘monstro cerebral, pessimista e sarcástico’, na definição dos modernistas. E, ainda, ‘herói do povo’ no olhar dos primeiros socialistas.

Machado de Assis é o ramo do conhecimento literário brasileiro mais estudado passados mais de 110 anos de sua morte em 29 de setembro de 1908.

Nascido de família humilde, tornou-se um homem muito respeitado, ocupando diversos cargos públicos e sendo nomeado cavaleiro e, posteriormente, oficial da Ordem da Rosa.

Epilético, gago e descendente de escravizados, mesmo vivendo em uma sociedade escravagista, conseguiu tornar-se mestre da cultura brasileira

Críticos de alta reputação, como os americanos Harold Bloom e Susan Sontage o inglês John Gledson, elevaram-no ao patamar de ‘gênio’, de ‘milagre’, por ter conseguido fugir de sua situação social e histórica para criar uma ficção universal.

“As palavras têm sexo (…) Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos de estilo.”  (Do livro A Metafísica do Estilo, em Várias Histórias)

Machado jovem

Desde os 15 anos, Machado é um entusiasta da vida noturna da Corte. Ainda aprendiz de tipógrafo, vai a bailes e circula pela rua do Ouvidor, o centro social do então Rio de Janeiro, capital do país.

Cronista teatral, frequenta teatros e se encanta por Aimée, a atriz de cancã do Alcazar Lyrique. 

Sua vida noturna tem seu final quando, aos 30 anos, se casa com a Carolina Augusta Xavier de Novais, senhora portuguesa que lhe ajudou na revisão dos livros e com quem viveu 35 anos.

Na aparência, nada que o compare a um excluído social: elegante, bem vestido, requintado e culto, mas também alegre, irônico, exuberante.

E, não bastando a riqueza de seus livros, sobram histórias não comprovadas sobre sua vida.

Casa_Machado_de_Assis
Casa do Cosme Velho, número 18; nesta residência, Machado de Assis e Carolina viveram grande parte da vida. (Imagem: Arquivo Nacional)

Dizem por aí…

Que ele tinha uma amante que vivia em uma moldura

Nos finais de tarde, ele tinha o hábito de aparecer na Livraria Garnier nos finais de tarde e deixou de fazê-lo. Os amigos, desconfiados, decidiram segui-lo e descobriram que seu coração foi capturado pela Dama do Livro, uma  pintura de óleo sobre tela de Roberto Fontana. Por a obra ser muito cara, ele se contentava em visitá-la diariamente na vitrine. ‘Defensores do amor’, os amigos fizeram uma ‘vaquinha’ e deram a tela de presente para ele. Em troca, Machado lhes dedicou o Soneto Circular.

Que aprendeu tudo sobre clássicos ainda na primeira infância com a madrinha da biblioteca, a senhora Mendonça Barrozo, que lhe teria aberto sua biblioteca e proporcionado ao afilhado pobre, que não frequentou a escola, a iniciação nos clássicos da literatura. Só que a madrinha morreu quando ele tinha 6 anos de idade!

A lenda do caldeirão conta que o escritor costumava queimar cartas e manuscritos descartados em um caldeirão de bronze, quando morava na rua Cosme Velho, 18. Vendo-o, a vizinhança gritava: “Olha o Bruxo do Cosme Velho”

Nem a certidão de óbito de Machado foi poupada de fantasias… 

Apesar da vitalidade de sua obra para escancarar a escravidão e o racismo e das feições afrodescendentes delineadas por sua máscara mortuária, além de omitida a sua filiação, vai constar no documento que ele era branco.

Machado de Assis com 35 anos
Machado de Assis com 35 anos (Imagem: Reprodução)

Machado, um grego

Algo bastante peculiar, embora não inédito, é que os adversários literários de Machado, viam o seu ‘caráter mestiço’ que  boa parte de seus amigos pessoais não conseguiam ou  evitavam enxergar.

José Veríssimo, o crítico mais próximo de Machado, quando da sua morte, escreveu:

“São tanto mais de admirar e até de maravilhar essas qualidades de medida, de tato, de bom gosto, em suma de elegância, na vida e na arte de Machado de Assis, que elas são justamente as mais alheias ao nosso gênio nacional e, muito particularmente, aos mestiços como ele. Mulato, foi de fato um grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia da sua obra.”

(Euritmia é a linguagem e a música em movimento, poesia e arte enquanto o corpo faz gestos limpos com graça e força.)

E outro amigo de Machado, Joaquim Nabuco, respondeu a Veríssimo:

“… ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato (…). O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego.”

Leia A Cor Sempre Roubada

Sílvio Romero, em seu livro Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira, de 1897, coloca os ‘pingos nos is’ e publica: 

“Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto (…) e sua obra inteira não desmente a sua fisiologia nem o peculiar sainete (provocação) psicológico originado daí.”

A cor resgatada

Joaquim Maria Machado de Assis era negro e denunciava a escravidão a seu modo, conta a revista Machado de Assis Afrodescendente,  do professor Eduardo de Assis Duarte, do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Minas Gerais. 

Durante cinco anos, ele se debruçou sobre a obra do escritor carioca para escrever uma antologia completa sobre a afrodescendência machadiana, reunindo crônicas, contos, críticas de teatro publicadas em jornais, poemas e trechos de romances sobre o tema, além de detalhadas análises críticas de seus textos relativas à questão étnica.

Os disparates para camuflar a real identidade de Machado de Assis impressionam. “Afirmou-se inclusive, que o uso de barba e bigode, quase obrigatório entre os homens do seu tempo, teria como objetivo o disfarce dos traços negróides. Isso sem falar dos polêmicos retoques para clarear a pele nos estúdios dos fotógrafos de então”, conta Assis Duarte.

“Tais lugares-comuns, somados à ausência de um herói negro em seus romances, fundamentam em grande medida a tese do propalado absenteísmo machadiano quanto à escravidão e às relações interétnicas existentes no Brasil do século XIX”, avalia o autor.

Leia Machado de Assis, ativismo disfarçado, sobre a abordagem da escravidão e da abolição na sua obra.

Machado de Assis Pintura
Machado de Assis foi retratado em inúmeras pinturas. (Imagem: Reprodução)

Crítico social

Ao completar 40 anos, uma conjuntivite o deixou temporariamente cego e mudou a sua vida. Obrigado a tirar licença e viajar para Nova Friburgo, escreveu – e ditou – o livro que viria a revolucionar a literatura nacional, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance em que inova na narrativa, aliando profundidade emocional, ao interpretar a sociedade brasileira.

A visão radical e original sobre a história, os políticos e as desigualdades sociais são marcas da sua escrita. Em uma de suas cartas ao amigo Afonso Celso, ele comenta que as dimensões continentais do Brasil não lhe pareciam uma vantagem, mas um perigo.

O autor critica valores burgueses por meio de ironias e metalinguagens. Precedendo não só o próprio realismo, instaura o realismo psicológico com diálogos diretos com o leitor e pensamentos pontuais que surgem ao longo das suas narrativas como uma reflexão sobre os acontecimentos.

Carioca cético e irônico, amante do xadrez e das armadilhas narrativas, o escritor pôs em xeque os conceitos de progresso e ciência. Suas ideias contraditórias são, até hoje, um desafio a gerações de decifradores. 

Machado feminista

À frente de seu tempo, em cartas – quase 200, inéditas por um século e que compunham sua correspondência pessoal -, “Machadinho’, como assina, sugere a leitura de uma coleção resumida feminista. Em seus contos, retrata a mulher vazia, vítima dos preconceitos que a limitavam

No livro Por um Novo Machado de Assis, o autor John Gledson chama atenção para a ousadia do escritor ao descrever situações em que o sexo se faz presente, escancarando sua lucidez sobre as necessidades humanas e sobre o fato de a mulher ser sexualmente reprimida.

Assim, ele retrata mulheres com desejos sexuais, como Eugênia, em Brás Cubas, que trai o marido; Marocas, no conto Singular Ocorrência, uma ex-prostituta, amante de uma homem casado, que decide sair à rua em uma noite de solidão para encontrar um homem. 

Em 1º de abril de 1877, ele escreveu: 

“Venha, venha o voto feminino; eu o desejo, não somente porque é ideia de publicistas notáveis, mas porque é um elemento estético nas eleições onde não há estética.”

LGBT…

A homossexualidade, também, se fez presente em seu radar. No romance Casa Velha, o episódio do estupro de um padre por um bispo está presente. No conto Pilades e Orestes, existe a sugestão da relação homoafetiva entre duas personagens femininas… 

Em Dom Casmurro, Bentinho diz que Capitu “era mais mulher” do que ele “era homem”. O mesmo Bentinho, em outro trecho, apalpa o braço musculoso de Escobar, sente atração sexual e a reprime.

Machado_de_Assis
Machado de Assis. (Imagem: Arquivo Nacional)

A vida é boa*

Rio de Janeiro, 1838. A capital do Brasil tem 300 mil habitantes, maioria escravizada e não letrada. A cidade é iluminada por lampiões a azeite de peixe. O transporte é por tração animal em ruas estreitas. O ambiente é insalubre. Falta higiene. Não existem banheiros. As belezas naturais estão sufocadas pela falta de higiene.

Dejetos domésticos e humanos, ares, incluindo fezes, são levados para as praias em carroças ou em tonéis carregados na cabeça por escravizados – chamados ‘tigres’, de quem todos fugiam apavorados por causa do cheiro nauseante e do receio de um tropeço ou esbarrão que pudesse respingar a ‘mercadoria’ nos pedestres e nas ruas.

Doenças epidêmicas matam muita gente. Os morros abrigam quartéis,  ordens religiosas e os ricos, em chácaras e casarões – os pobres serão expulsos para lá apenas a partir da virada do século XIX.

O Morro do Livramento abriga uma grande família rica de origem portuguesa, com muitos agregados e escravizados. Um dia, chega ali o pintor de paredes e dourador Francisco José de Assis, ‘pardo forro’, de 32 anos, para prestar serviço.

Logo ele conhece e se apaixona pela imigrante de Açores – uma ilha de Portugal – Maria Leopoldina Machado da Câmara, de 26 anos, que veio menina com a família para o Brasil. Ela costura, borda e faz outros trabalhos como agregada no casarão. 

No mesmo ano, Francisco e Maria se casam e, dez meses depois, em 21 de junho de 1839, nasce Joaquim Maria Machado de Assis.

Garoto prodígio

Apesar do amor entre os pais, a infância de Joaquim não é tranquila. Ele tem crises de epilepsia e, aos 9 anos, assiste a morte de sua mãe morre por tuberculose. O pai casa de novo, mas morre logo também.  

Órfão de pai e mãe, sem recursos, aprende a ler e escrever por conta própria. Autodidata, com apenas 14 anos publica seu primeiro soneto:  À Ilma. Sra. D.P.J.A., no Periódico dos Pobres. No ano seguinte, 1855, é a vez da publicação do primeiro poemaEla, publicado na revista Marmota Fluminense.

Fascinado por livraria e tipografia, em 1856 torna-se aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional. Dois anos depois, em 1858, já é revisor no Correio Mercantil e, em 1860, redator do Diário do Rio de Janeiro.

Trabalha como censor teatral, em 1862, e em 1867, é promovido a ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.

Funcionário público, sempre teve tempo para escrever.

Estatua Machado de Assis
Estátua do Machado de Assis na Academia de Letras. (Imagem: Reprodução)

Uma grande obra

No mesmo 1873 em que é nomeado primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, publica os contos Histórias da Meia-Noite…. No outro ano,  A Mão e a Luva e, depois, Iaiá Garcia, Memórias Póstumas…

Seus escritos, antes de se tornarem livros, eram publicados em jornais, revistas e folhetins como O Globo, O Cruzeiro, Revista Brasileira, O Espelho, Semana Ilustrada, Gazeta de Notícias e Jornal das Famílias. 

O primeiro livro que publica é a tradução de Queda que as Mulheres têm para os Tolos. Em 1864, com 25 anos, estreia como poeta, com seu primeiro livro de poesias, Crisálidas. Em 1872, é a vez de Ressurreição, o seu primeiro romance

Contista, cronista, jornalista, poeta e teatrólogo, autor de obras consagradas como Dom Casmurro e Quincas Borba, trabalha intensamente e morre aos 69 anos, de câncer de boca.

Em 1908, licenciado das funções públicas, mesmo debilitado, escreve o romance, Memorial de Aires.

Suas últimas palavras, sussurradas ao crítico José Veríssimo, ecoavam o que já se registrava em sua correspondência juvenil: “A vida é boa!”

Fontes: livro Machado de Assis Afrodescendente, de Eduardo Assis Duarte, Revista Época nº 541, Toda Matéria, Brasil Escola, Hora do Povo

*A narrativa de “A vida é boa” é um resumo, em outras palavras, do biógrafo R. Magalhães Júnior.

No site do Ministério da Educação é possível uma imersão na obra deste pioneiro.

3 comentários em “Machado de Assis afrodescendente”

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