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O Cinema Negro nasce nos EUA

- Tania Regina Pinto

Cinema negro é postura, conceito, discernimento sobre a nova posição sócio-cultural do afrodescendente. É confronto emergente, que incomoda, alvoroça a sociedade, até então, confortável com as desigualdades raciais e re-constrói a imagem do negro a partir da sua humanidade, o colocando como sujeito na história – não animal, coisa, objeto.

Representatividade importa e a chamada 7ª Arte, o cinema, o audiovisual, tem tudo a ver com isso – esteja ele na tela grande ou na tela pequena, no serviço de streaming. E é sobre o pioneirismo negro na indústria cinematográfica que se debruça esta edição.

Destaque para os Estados Unidos, uma das indústrias cinematográficas mais antigas do mundo, o primeiro país em produção negra e o segundo principal a produzir conteúdo – há 2 anos, a China ocupa a primeira posição.

Na América do Norte existem mais produtores, cineastas, protagonistas negros, histórias negras sendo contadas…  Atores, atrizes e diretores negros têm seus trabalhos reconhecidos, premiados e seus talentos refletidos em milhões e bilhões de dólares, investidos no próprio cinema negro. Oprah Winfrey, Denzel Washington, Will Smith confirmam esta boa realidade.

Produtos culturais influenciam o existir,

geram milhares de empregos e geram divisas com a exportação de filmes e séries para o exterior. Países como Austrália, Canadá, França, Inglaterra, Espanha, Índia, Coreia do Sul e os próprios Estados Unidos sabem disso e intensificam seus esforços para aumentar a produção local de conteúdo audiovisual.

Filmes, séries e músicas aumentam o poder de identidade nacional e criam o chamado soft power, a capacidade de obter vantagens, favores, interferir, intervir no como as pessoas se colocam no mundo.

Só o Governo do Brasil encara políticas de incentivo à cultura como desperdício de dinheiro público.

Jornal cinematográfico

William D. Foster, produtor de cinema afro-americano, é um dos pioneiros na indústria cinematográfica negra  ao lançar, em 1912, The Railroad Porter, o primeiro cinejornal preto da história e o primeiro do mundo a contar com um elenco inteiramente negro. A produção trazia cenas de um desfile da YMCA – Associação Cristã de Moços – e quebrava estereótipos raciais.

Também ator e escritor, Foster é o primeiro afro-americano a fundar uma empresa de produção cinematográfica: a Foster Photoplay. Sua companhia produziu quatro filmes. Todos lucrativos.

Na mesma década, o diretor e roteirista de mais de 40 filmes, Oscar Micheaux, conquista o pioneirismo nas race pictures, filmes de baixo orçamento produzidos por e para negros durante o estopim da segregação racial nos EUA.

The Homesteader, lançado em 1919 e baseado em livro homônimo de Micheaux, é considerado o primeiro longa-metragem feito na história com elenco e equipe negros para um público negro.

Rebelião de Los Angeles

Mas é nos anos 1970 que acontece um dos movimentos cinematográficos de maior importância para o cinema negro, criado por jovens cineastas afro-americanos estudantes da Universidade da Califórnia de Los Angeles (UCLA), a partir da implementação do programa Ethnic Communications, que abriu as portas para uma produção audiovisual que se relacionasse com as questões sociais que eclodiam no momento, como os protestos contra a Guerra do Vietnã e, principalmente, o movimento pelos direitos civis da comunidade negra.

O programa de Elyseo Taylor, o primeiro professor afro-americano do curso de cinema da UCLA, incentivava o ingresso de estudantes negros, indígenas, asiáticos e latinos – de acordo com as classificações étnicas dos Estados Unidos.

A crítica de cinema estadunidense Soraya Nadia McDonald conta que as produções dos jovens estudantes da UCLA – com realizadores negros, elenco negro, com atores inexperientes e estreantes, de baixo orçamento, contando histórias de negros –  foi a forma encontrada pelos “rebeldes” para renegar a linguagem e os códigos do cinema que se fazia a apenas 16 quilômetros de suas salas de aula, em Hollywood.

“A indústria foi criada com os códigos de uma comunidade branca privilegiada. Aquela geração percebeu que para contar suas histórias, com origens nas diásporas africanas, precisava fazê-lo criando novos códigos e uma linguagem própria”, explica o pesquisador e programador de cinema Luís Fernando Moura.

Existem, pelo menos, 73 filmes associados ao L.A. Rebellion, produzidos da virada para a década de 1970 até o fim da década de 1980, com o olhar para a realidade negra na sociedade americana, para a ancestralidade, para a luta por igualdade, questões de gênero, orgulho negro, em proximidade com a visão de ativistas como Martin Luther King, Malcolm X e dos Panteras Negras.

Outra das principais marcas do L.A. Rebellion é o uso da música de raízes negras, seja nas trilhas percussivas com tambores africanos ou no jazz.

Dando um Rolê (Passing Through), 1977
"Dando um Rolê" (Passing Through), 1977. (Imagem: Mubi/Reprodução)

O curador Luís Moura destaca, por exemplo, o longa Dando um rolê, de 1977, de Larry Clark, como uma grande homenagem ao jazz americano: “O filme traz uma narrativa policial contada através da música, referenciando vários músicos paradigmáticos na cultura afro-americana”.

Uma imagem icônica dessa relação com a música aparece também em Ciclos, quando três mulheres de óculos escuros percorrem as ruas da cidade, como quem possui, com alegria e autoridade, um território. O momento evoca a célebre canção To be Young, Gifted and Black, de Nina Simone, uma ode ao orgulho negro.

Nessa subversão das histórias criadas e contadas principalmente por homens brancos, o trabalho desses cineastas tem eco na indústria cultural contemporânea, nas obras de Beyoncé, na música, e do  diretor Jordan Peele, “obras que trazem as experiências e vivências negras a partir de um olhar negro”, indica Moura, num misto de “alegria” e espanto:

“O resgate desses títulos causa “alegria”, mas também provoca espanto ao revelar que ainda hoje são tratadas questões de 30 anos atrás, como as experiências das populações negras diante da polícia e o encarceramento em massa de homens negros.”

Os filmes dirigidos por mulheres, em suas narrativas, reivindicam autonomia sobre seus corpos, emancipação sexual e social, temas também em pauta na cultura contemporânea.

Visão do  Berço

O permanente avanço do mercado cinematográfico negro provoca também uma mudança no olhar para o continente africano, com cada vez mais cineastas estrangeiros contestando a abordagem estereotipada dos filmes.

Um dos grandes marcos do cinema africano é o curta Afrique-sur-Seine, produzido em 1955 por estudantes africanos. Com 22 minutos de duração, o filme, gravado em Paris, mergulha na vida desses estudantes e a saudade que sentem de sua terra natal.

Nos anos 1960, as lutas pelo fim das colonizações em África registram outro marco para a indústria cinematográfica do continente com o cineasta senegalês Ousmane Sembène, considerado o “pai do cinema africano“, reconhecido internacionalmente pelo longa Garota Negra, de 1966, que conta a história de uma mulher africana que vai para Paris trabalhar como doméstica.

Sempre a servidão

“Você gostaria de limpar a nossa casa?”

“De cuidar das nossas crianças?”

“De trabalhar no nosso jardim?”

“Cozinhar para a nossa comida?”

“Ser nosso motorista?”…

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Fácil imaginar a cor de quem faz a pergunta e de quem ouve a pergunta, não é?

 Estas perguntas contam do que se trata o  “racismo genderizado” – como classifica Grada Kilomba no livro Memórias da Plantação –, que se faz presente, desde sempre, nas produções cinematográficas, dando vazão à fantasia colonial de manter as pessoas negras na servidão.

Hattie McDaniel Scarlett O'Hara
Hattie McDaniel (em cores) e Scarlett O'Hara contracenando em "O Vento Levou". (Imagem original: Everett Collection)

A atriz Hattie McDaniel registra seu nome na história da indústria cinematográfica como a primeira mulher negra a conquistar uma estatueta do Oscar por seu papel em E o Vento Levou, clássico do cinema mundial, de 1940. No filme, sua personagem é a empregada Mammy, filha de ex-escravizados.

Mas a mulher negra, idealizada pelos colonizadores, aparece nas comédias hollywoodianas também como brava, mandona, masculinizada e indisponível para o afeto.

E, fora da servidão, para atores e atrizes negros e negras é reservado o personagem “exótico” – outra estratégia de deixar a negritude sem lugar, como “diferente”,  isolada, seja por discriminação, deficiência ou restrição social.

Personagens negros, nos filmes da branquitude, a maioria, não têm história própria, família, meio social… Seu único objetivo na trama é ajudar o protagonista branco, proferindo palavras  com poderes espirituais, sabedoria e altruísmo, servindo de “escada”, como acontece nas novelas nacionais – vale lembrar a Ritinha (Isis Valverde) de A Força do Querer e a amiga inseparável Marilda, interpretada pela atriz Dandara Mariana.

À frente

Spike Lee, classificado “pioneiro visionário” pelo conjunto de sua obra no Director Guild of America 2022 (DGA), evento que celebra os maiores diretores do cinema mundial, foi quem, em 2001, popularizou o termo “negro mágico”, ao declarar que estava cansado de ver essa abordagem em Hollywood.

Para ele, a ideia de negros com poderes espirituais representa um retrocesso e reproduz antigos estereótipos em nova roupagem: “Eles ainda estão reciclando o ‘nobre selvagem’ e o ‘escravo feliz‘”.

Indicado cinco vezes  ao Oscar,  incluindo a categoria de Melhor Roteiro Original por Faça a Coisa Certa, de 1989 – um dos filmes mais emblemáticos de sua carreira e divisor de águas na história do cinema negro atual -, recebeu sua primeira estatueta dourada com o filme Infiltrado na Klan, em 2019Oscar de Melhor Roteiro Adaptado.

Os ancestrais vão nos ajudar a ganhar nossa humanidade.

Vamos nos mobilizar, estar do lado certo da história. É uma escolha moral.

Do amor sobre o ódio. Vamos fazer a coisa certa”

– declarou em seu discurso de premiação.

Novos tempos

Os serviços de streaming, o aumento do acesso a conteúdos audiovisuais e a demanda por representatividade têm provocado novas abordagens cinematográficas, mas os números indicam que há muito a se caminhar, ainda, nas telas e nos bastidores.

 Pesquisa realizada em 2011, e publicada pelo Sage Jornals, revela que os

conteúdos televisivos estão ligados diretamente à autoestima das crianças.

O estudo, a partir de 396 entrevistas com meninos e meninas, negros e brancos, constata que enquanto meninos brancos sentiam aumentar sua autoestima ao assistirem programas televisivos, as meninas brancas e as crianças negras percebiam uma diminuição da autoestima, a partir dos mesmos conteúdos.

 Outra pesquisa, de 2018, da USC Annemberg, que estuda a diversidade e a inclusão no entretenimento, aponta que dos 1.100 filmes que se destacaram em 2017, 70,7% dos papéis eram protagonizados por artistas brancos e apenas 12,1% por artistas negros. Os outros 17,2% se dividiam entre hispânicos, asiáticos etc.

Em território nacional, uma pesquisa divulgada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), em 2018, informa que dos 172 filmes que entraram em cartaz em 2016, 2,1% foram assinados por homens negros e nenhum foi dirigido ou roteirizado por mulheres negras. Do grande resto, 75,4% tinham direção assinada por homens brancos e 19,7% por mulheres brancas.  

Quanto à participação nos elencos, apenas 13,4% de atores e atrizes negros participaram das filmagens dos 97 filmes nacionais lançados em 2016.

Os primeiros prêmios

A primeira atriz negra a conquistar a estatueta do Oscar, Hattie McDaniel, mesmo vencedora, precisou de uma autorização para ingressar no local da cerimônia, foi colocada em uma mesa nos fundos do teatro e não pôde posar para a foto com os outros atores vencedores.

Em 2020, após os protestos contra o racismo,  o filme E o Vento Levou… chegou a ser retirado do catálogo de streaming HBO Max pela representação que faz de escravizados conformados e senhores de escravos sendo retratados como heróis.

Vinte e quatro anos após o prêmio de Hattie, em 1964, a academia entrega o primeiro Oscar para um ator negro: Sidney Poitier, eleito o Melhor Ator por seu trabalho em Uma Voz nas Sombras.

Na trama, ele vive um operário desempregado que passa a ajudar nas tarefas diárias de uma propriedade de freiras católicas. 

Em 2002, Poitier  é contemplado novamente com um Oscar, dessa vez honorário, por sua contribuição ao cinema.

Ava Duvernay
Ava Duvernay (Imagem: Dia Dipasupil/Getty)

Só no século XXI acontece a indicação da primeira diretora negra no  Globo de Ouro, Ava Duvernay, em 2014, por Selma – longa indicado na categoria de Melhor Filme no Oscar de 2015. A produção acompanha a história do ativista social Martin Luther King, nas marchas realizadas em 1965, na cidade sulista de Selma, pelo direito ao voto para a comunidade afro-americana.

Ava é conhecida, também, por duas grandes produções lançadas diretamente na Netflix, que abordam o racismo: o documentário A 13ª Emenda e a minissérie Olhos que Condenam.

O primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher afro-americana, estreado comercialmente nos Estados Unidos, data de 1991:  Filhas do Pó, de Julie Dash.

#SoWhiteOscar

Em 2015, a ausência de negros nas indicações da Academia foi bastante criticada, gerando protesto de atores, diretores e público com o uso da hashtag  “Oscar muito branco” – #SoWhiteOscar.

Passados dois anos, em 2017, Moonlight – Sob a Luz do Luar, do cineasta Barry Jenkins, é eleito o Melhor Filme e Mahershala Ali conquista seu primeiro Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. 

Barry Jenkins faz discussões poderosas sobre o racismo em seus filmes. Não só em  Moonlight, mas também em Se a Rua Beale Falasse.

Na mesma cerimônia, Viola Davis conquista sua primeira estatueta por Um Limite Entre Nós (Fences).

Jordan Peele, diretor conhecido de filmes como Entrando Numa Fria Maior Ainda com a Família, passa a integrar o time de cineastas negro do cinema negro com o sucesso do terror psicológico Corra!  – Oscar de Melhor Roteiro Original.

Do nascimento de uma nação a Wakanda

Pantera Negra é o filme que nos representa, não importa nossa idade, do zero aos 150 anos. Mais que um marco no universo dos super-heróis, através Chadwick Boseman, somos colocados de volta ao Berço, na Mama África, mas a partir de um olhar afrofuturista para a nossa história, em uma sociedade forjada no Mulherismo Africana, com relações horizontais – o rei governa com mulheres: mãe, irmã, noiva, tropa…

E pensar que no primeiro longa-metragem que se tem notícia – filme mudo –,  O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation), de 1915, considerado “um dos pais da moderna linguagem cinematográfica”, um drama histórico sobre a guerra civil americana, os personagens negros – com direito a diálogo – eram  atores brancos pintados de preto! Atores negros não podiam falar.

O filme termina com a revolta dos negros sendo abafada pela Klu Klux Khan, em uma grande produção a céu aberto! É a visão sulista, escravagista.

Cento e um anos depois, em 2016, provocativamente, Nate Parker resgata a violenta rebelião de escravizados de 1831 – trazendo para as telas o ponto de vista negro, desafiando a narrativa dominante e racista da história norte-americana, eternizada pelo clássico do diretor David W. Griffith.

Um caso policial envolvendo ator e diretor, entretanto, tira o filme da cotação para o Oscar 2017, mas seu trabalho é celebrado no Festival de Sundance com uma dupla premiação: Grande Prêmio do Júri na competição de filmes norte-americanos e Prêmio do Público.

Quanto ao caso policial, quando do lançamento do filme, ressurge na mídia a história de um estupro na vida de Nate, na época em que era estudante universitário, envolvendo também o coautor do argumento, seu amigo Jean Celestin.

Os dois foram absolvidos, mas o dano compromete o filme, em especial, pelo fato de o estupro de duas mulheres escravizadas terem sido a causa da rebelião negra.

Este é um filme que merece ser visto, refletido. Ele traz uma reflexão sobre nossa relação com o Cristianismo, com a Bíblia a serviço da escravidão, com as páginas não lidas.

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1 comentário em “O Cinema Negro nasce nos EUA”

  1. Thiago De Jesus Silva

    Achei nescessário esse documentário sobre o quão importante foi o movimento negro no cinema mundial

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