Na música considerada um símbolo do orgulho negro no Brasil, que surgiu de caso de racismo vivido por Macau*, seu compositor, uma oportunidade de roda de conversa para debater políticas públicas contra a violência da polícia.
“Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Eu estou sempre na minha
E não posso mais fugir
Meu cabelo enrolado
Todos querem imitar
Eles estão baratinados
Também querem enrolar
Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso
A verdade é que você (e todo brasileiro)
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará crioulo”
Assista Olhos Coloridos, de Macau, com Seu Jorge e Sandra de Sá ou só com Sandra de Sá.
*Nascido Osvaldo Rui da Costa, ganhou o apelido de “Macau” por causa dos olhos apertados quando ri que o fariam ficar parecido com um chinês. Daí, o nome da antiga colônia portuguesa na Ásia.
Macau participou da banda Paulo Bagunça e da Tropa Maldita, que gravou um LP em 1973.
A história da música
“Olhos coloridos”, célebre na voz de Sandra de Sá desde os anos 1980, nasce do racismo policial. Macau, o compositor, fez letra e música na década de 1970, após ser preso pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em uma exposição de escolas públicas no Estádio de Remo da Lagoa.
Macau morava na Cruzada São Sebastião, no Leblon, na zona sul do Rio, onde, antes, era a Favela da Praia do Pinto, destruída em um incêndio em 1969.
Como o álbum que havia gravado não estava fazendo sucesso, Macau estava deprimido. Na tentativa de animá-lo, um amigo o levou para ver a exposição. E ele foi.
Com roupas simples e cabelo black power, não demorou, foi interpelado por um PM para averiguação. Dentro de uma sala, um sargento baixinho olhou para Macau e começou a “conversa”:
“Eu estou vendo você lá de baixo, você não é fácil, hein? Você ri demais, fala demais”.
Mas não parou por aí: começou a falar da roupa, do cabelo:
“Você mora naquela lama ali, cheia de bandido” – acusou.
Macau, na defesa, reagiu: “Bandido não, ali não tem bandido. Eles são moradores da Cruzada São Sebastião”.
E o tal sargento completou:
Macau denunciou o preconceito, a discriminação, chamou atenção: “O sangue que corre na sua veia, corre na minha veia também. É vermelho”.
‘Alma ferida’
Macau foi preso e colocado em um camburão às 3 horas da tarde e só chegou à delegacia 1 hora da madrugada. Ficou no veículo, que circulou por toda a cidade, prendendo pessoas e mais pessoas.
Depois, todos foram encarcerados: “Era uma escuridão, eu sendo esmagado, me senti dentro de um porão. Fiquei muito mal, fragmentado, com a alma ferida”.
E assim todos passaram o resto da noite, em uma cela apertada. Macau, ao lado de um vaso sanitário, agachado por causa da falta de espaço.
No dia seguinte, padre Bruno Trombetta, da Pastoral Penal da Igreja Católica, conseguiu a soltura de Macau que, revoltado, querendo explodir, foi caminhar sozinho na praia…
Nasce a canção
Diante do mar do Leblon, ele chorou e compôs a letra, o seu desabafo. “Eu comecei a olhar o mar e veio, de forma única, o texto dos ‘Olhos coloridos’, inteiro. Eu corri para casa, peguei o violão e comecei a tocar a canção”.
Em 1974, Macau gravou a música em uma fita. E ela só se tornou conhecida nas mãos de Sandra de Sá em 1982, estourando nas rádios.
“Não é à toa que ela é chamada de rainha da soul music brasileira. Ela tem raça. Toda vez que eu a escuto cantando a minha música, eu também fico emocionado. É sempre novo, é sempre uma luz”, elogia Macau.
O hino
Para Sandra, “Olhos Coloridos” é mais do que uma música que fala de negritude. Para a intérprete, ela pertence a todos.
“É um hino do povo brasileiro. Afinal de contas, quem é quem no povo brasileiro? Quem pode se definir como uma coisa, e não outra?”, reflete Sandra.
Para Luciana Xavier, jornalista e pesquisadora de música brasileira, “é uma canção repetida à exaustão porque tem uma mensagem muito forte, que afirma a identidade negra por meio da valorização da beleza do ‘cabelo duro, sarará’”.
Segundo Luciana, ao mesmo tempo, a música mobiliza e denuncia o racismo, avisando que a mesma pessoa que ri do negro também ‘tem sangue crioulo’, que é o maior paradoxo brasileiro.
“É uma música que prega a conscientização, é uma denúncia contra o racismo, mas também é um elogio à mestiçagem, que faz a canção funcionar em vários contextos e ser adotada por vários grupos”, afirma a pesquisadora.
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Fonte: G1
Escrito em 8 de janeiro de 2023.