Racismo recreativo, a hostilidade no riso
- Beth Brusco
Racismo Recreativo é um termo cunhado por Adilson Monteiro, Professor Doutor pela Universidade de Harvard em Direiro Antidiscriminatório (Imagem: Reprodução | Mix Palestras)
O humor enquanto política de antagonismo, ódio e desumanização.
Usar a brincadeira como “ferramenta” de inferiorização do povo preto é uma maneira de definir o que se denuncia como racismo recreativo. É a “brincadeira de péssimo gosto” que fere, maltrata e eterniza estereótipos que não contam a verdade sobre a nossa existência.
O termo racismo recreativo tem a ver com “piadas”, “brincadeiras” e comentários que, aparentemente, são inofensivos, mas associam pejorativamente características físicas e culturais de pessoas não brancas durante a interação social.
Racismo recreativo é um modo hostil de fazer humor para atingir, desclassificar, limitar o viver das pessoas pretas, classificando-as, por exemplo, como violentas, incapazes, não confiáveis, sujas, feias, desengonçadas, bêbadas, burras…
Tudo muito divertido!!!! Só que, na vida real, racismo recreativo causa constrangimento, faz chorar, dói, compromete a saúde mental, a qualidade do trabalho… É injúria racial, é crime!
“O humor racista é um tipo de discurso de ódio.”
Palavra de Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em São Paulo, autor do livro “Racismo Recreativo”, sexto título da coleção Feminismos Plurais, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro.
O termo
Adilson Monteiro é o criador da expressão “racismo recreativo”. Aconteceu em 2014, durante entrevista na qual discutia episódios de racismo nos campos de futebol brasileiros, onde é comum vermos e ouvirmos torcedores agredindo verbalmente jogadores negros – comportamento que é sempre justificado como humor ou recreação.
Meses depois, Adilson se deparou com uma decisão judicial na qual uma mulher branca foi processada e absolvida, depois de dizer a uma mulher negra que ela estava comprando bananas porque devia ter muitos macaquinhos em casa.
Em seu argumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo declarou que a mulher branca quis apenas interagir com a vítima de forma amistosa.
Daí a motivação para uma pesquisa jurisprudencial em que Adilson Monteiro encontrou centenas de casos semelhantes na Justiça Criminal e na Justiça trabalhista. O resultado está em “Racismo Recreativo”.
No livro, o jurista esmiúça os conceitos de racismo e injúria racial, expõe o viés racista da Justiça brasileira também quando avalia produções culturais, como programas humorísticos, por exemplo, que reproduzem estereótipos raciais para promover a descontração das pessoas, em uma “espécie de licença” para a branquitude alimentar sua pretensa supremacia.
Ou, como define Adilson Monteiro:
“O humor racista opera como um mecanismo cultural que propaga a ideia de que o racismo não tem relevância social e, ao mesmo tempo, permite que pessoas brancas mantenham uma imagem positiva de si mesmas.”
Já é “normal” os acusados se esconderem por trás de “argumentos” do tipo: “é só uma piada”, que “não tiveram a intenção de ofender”, que “o humor não traz consequências negativas” para as pessoas, de terem “amigos negros”…
Polêmico!
A televisão brasileira e seu humorismo são multiplicadores do racismo recreativo e o primeiro humorista homossexual e negro na TV, Jorge Lafond, com sua personagem Vera Verão – na avaliação do jurista Adilson Moreira – é o exemplo perfeito de como o humor racista reproduz estereótipos negativos sobre minorias raciais.
Para ele, a personagem Vera Verão não combatia o preconceito e a discriminação como afirmava o ator Jorge Lafond. Ao contrário, criador e criatura o alimentavam:
“Primeiro, a partir da degradação sexual de minorias sexuais. Toda a sua personalidade girava em torno da sua sexualidade. Encontrar parceiros sexuais era o único propósito de sua vida. Segundo, a personagem reproduzia a ideia do homem branco como único parceiro sexual socialmente aceitável porque ela só se interessava por homens brancos. Terceiro, ela expressava a noção de que todos homossexuais são efeminados e que todos os homens negros homossexuais estão à procura de homens brancos. Quarto, ela reproduzia a imagem hipersexualizada da mulher negra porque ele se apresentava como uma mulher”.
Leia mais sobre Jorge Lafond, que é também o primeiro homem Rainha de Bateria de escola de samba e primeira nudez no Carnaval no artigo A Vera Verão de Jorge Lafond.
No reality show Big Brother Brasil, da Rede Globo, este tipo de racismo gera repercussão nacional, ano a ano, sempre com polêmicas, acusações no futuro do pretérito e desculpas esfarrapadas – tudo entre o “teria” e o “foi só uma brincadeira”…
Na edição de 2023, aliás, o reality show se tornou referência de racismo recreativo e do que tem de ser impedido, do que é inaceitável – pessoas negras foram atacadas com xingamentos de “Urubu de Luto”, “Urublue” e “Urubu de Confusão”.
Os participantes abusaram no uso de micro agressões aos participantes negros em nome do “humor”, da “brincadeira”, retratando a negritude como sinônimo do esteticamente desagradável e inferior.
“As práticas de racismo recreativo são perversas… Enquanto quem pratica se diverte, quem é alvo dessa recreação é diminuído, animalizado, irracionalizado. Isso gera traumas cruéis em quem sofre.” (Ciro Brito, advogado, presidente da Comissão de Promoção à Igualdade Étnico-Racial da OAB Santarém-PA)
Mas apesar das denúncias, o Ministério Público do Rio de Janeiro arquivou o inquérito, afirmando não encontrar provas consistentes de crime de racismo!
Vítimas cordatas
O pior é que o racismo em forma de piada, a partir do fenótipo do povo preto, ainda dá audiência e é posto em dúvida enquanto violência, inclusive por nós!
Esta é uma das facetas do racismo mais disseminada socialmente, menos consensual e menos combatida.
Até nas relações familiares e de amizade, o racismo recreativo impera e nem sempre é visto como problema.
Só que racismo recreativo é estratégia de manutenção de poder, explicita Adilson Monteiro:
“As crenças precisam persistir para que as hierarquias raciais sejam legitimadas. Pessoas brancas vão perder oportunidades quando vivermos em uma realidade na qual não existam estereótipos raciais. É por isso que elas estão tão empenhadas na degradação moral de minorias. Querem preservar suas vantagens injustas a qualquer custo”.
Na prática, o racismo recreativo reforça a ideia de incompetência negra, o que compromete a possibilidade de se conseguir acesso a oportunidades profissionais.
Quer dizer, além de o povo negro ser atingido em seus sentimentos, em sua moral, existe a questão econômico-financeira: negros ganham 50% a menos do que brancos em função dos estereótipos negativos que circulam na nossa sociedade.
Mundo corporativo
Não é por acaso que o ambiente de trabalho é o lugar no qual essa vertente do racismo mais se manifesta. O advogado Adilson Monteiro analisou centenas de decisões judiciais que terminaram na absolvição de pessoas brancas acusadas de injúria racial.
Geralmente, empregadores e colegas de trabalho fazem uso constante de piadas racistas para constranger funcionários negros, utilizando uma suposta amizade ou a relação cordial com negros no cotidiano como “álibi”:
“O problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada determina o tratamento das pessoas negras em todos os contextos”.
As “brincadeiras” no ambiente de trabalho machucam e geram efeitos tão danosos quanto ofensas explícitas:
“Piadas racistas procuram afirmar a ideia de que apenas pessoas brancas são agentes sociais competentes. (…) O racismo recreativo tem um caráter estratégico: o uso de piadas não ocorre apenas para entreter pessoas brancas, mas sim para perpetuar a ideia de que apenas membros do grupo racial dominante podem ocupar posições de poder”.
Nada escancarado
Adilson Monteiro chama de “micro agressões” a série de atos e falas que expressam desprezo pela maioria da população brasileira que é não branca.
E não faltam exemplos no dia a dia… É a mulher branca que atravessa a rua porque vê um homem negro na mesma calçada que ela… O segurança que persegue a dona de casa preta durante suas compras no supermercado… As piadas fora de propósito… Os comentários sempre citando a cor da pele, ou o nariz, ou a bunda, ou o cabelo…
Micro agressões causam insegurança, geram baixa autoestima e até doenças psicológicas na esfera individual. Coletivamente, os efeitos são o sentimento de não pertencimento, ausência e invisibilização no ambiente de trabalho.
Pesquisa realizada pela plataforma de empregos Indeed, em parceria com o Instituto Guetto, em março de 2021 – com 245 profissionais negros no Brasil, entre estagiários, trainees e efetivos de empresas de diversos portes -, traça um esboço do que vivem as pessoas não brancas no mundo corporativo:
“O preconceito, muitas vezes, surge em rodas de conversa em tom de brincadeira ou até mesmo em olhares e diferenças de tratamento. O RH precisa estar atento porque nem todos vão denunciar uma atitude de discriminação, mas coibir essas práticas e desenvolver ações no sentido de aumentar o senso de pertencimento desses profissionais vai fazer toda a diferença até mesmo na produtividade.”
(Vitor Del Rey, presidente do Instituto Guetto)
Condenado!
Há sentenças de condenação por racismo recreativo sendo aplicadas.
Em São Paulo, a Justiça do Trabalho condenou uma empresa de comunicação por danos morais por praticar racismo recreativo contra uma trabalhadora.
A funcionária, publicitária, entrou com um processo contra a empresa, após ser constrangida em uma reunião virtual da equipe:
A supervisora começou a conferência com a frase:
“Estou com vontade de ver todo mundo e em breve irei marcar uma reunião para ver o rosto de todos. Quero ver se fulano cortou o cabelo e se a R* (nome da funcionária) continua preta”.
Após cobrar providências do dono da empresa – por dois meses, a publicitária foi demitida.
A juíza Renata Bonfiglio, na sentença, escreveu que a “conduta representa uma política cultural que usa o humor para expressar hostilidade”.
Após acordo entre as partes, a empresa foi condenada a pagar um total de R$ 18 mil – R$ 16 mil por danos morais e R$ 2 mil de honorários advocatícios.
Força da lei
Leis existem, mas não são devidamente aplicadas. Em relação ao ambiente laboral, o artigo 7º, inciso XXX, da Constituição da República proíbe diferenças salariais por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. A CLT – Consolidação das Leis do Trabalho prevê multa por discriminação em razão do sexo ou etnia e assegura a isonomia salarial (artigo 461
O ano de 2023 trouxe como reforço a Lei 14.532, que equipara o crime de racismo à injúria racial e amplia a pena de 1 a 3 anos para 2 a 5 anos de prisão.
Leia também os artigos:
Racismo estrututral, os caminhos da exclusão, com conceitos de preconceito, discriminação, racismo e discriminação racial.
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*Com a Redação
abril 2023
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