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Iemanjá, a deusa iorubá, uma filosofia africana

Você já ouviu falar de Iemanjá? Essa deusa iorubá, conhecida como a mãe dos peixes, é uma figura central na mitologia africana e representa muito mais do que apenas uma entidade espiritual. Ela é a expressão do amor maternal, da proteção e da força feminina. Vamos navegar pelas águas salgadas de sua história, entender seu papel na criação do mundo e como ela se tornou um símbolo de resistência e empoderamento.

Cada orixá é um modo de compreendermos quem somos, como a humanidade foi criada. E ela é a filha do casal primordial!

Iemanjá (Imagem: Reprodução | Central de Tecidos)
Iemanjá (Imagem: Reprodução | Central de Tecidos)

Por Tania Regina Pinto e Lizandra Andrade

Filosofias africanas, mitologia africana, orixás existem desde sempre. Em África, o berço de tudo – antes das mitologias grega e romana, de Jesus, do Cristianismo e de a igreja de Roma apropriar-se do direito do povo de santificar humanos mortos!

Do sangue dos mártires – após a crucificação de Jesus – e da intolerância religiosa surgiram os santos. Os assassinados nas arenas, destroçados por leões, a mando do poder político, eram venerados com leituras, salmos e orações, bem como os eremitas que, por penitência, viviam isolados, experimentando martírios diários.

A ‘santificação’ era ‘natural’. Vivia-se o tempo dos orixás, depois dos deuses das mitologias grega e romana e, mais pra frente, de Jesus. A ideia de um deus único é que criou, no povo, a necessidade de santos que fizessem a “ponte” com o divino. 

Assim surgiu Ifigenia da Etiópia, a primeira africana santificada pela religiosidade popular no século I depois de Cristo. Princesa, ela sobreviveu a uma fogueira, em formato de trono, onde pretendiam queimá-la viva.

Dez séculos depois, no ano 1170, em documento do papa Alexandre 3º, a igreja católica se torna responsável por santificar pessoas e declarar oficialmente quem é e quem não é santo. 

Josephina Bakhita é a primeira africana canonizada , “transformada” em santa pelo Vaticano, o que acontece no finalzinho do século XX, em 1 de outubro de 2000. Demora compreensível para uma igreja que atestou para a Europa e para as Américas que africanos não tinham alma!

Assim chegamos à “Santa” Iemanjá!…

Do Iorubá, “Yèyé omo ejá”, “a mãe dos peixes” ou ”a mãe cujos filhos são como peixes”, a orixá, dependendo da região, também é chamada: Inaé, Maria, Dandalunda, Marabô, Mucunã, Princesa de Aiocá, Janaína, Rainha do Mar, Sereia …

Em território nacional, é considerada a “Afrodite Brasileira”, padroeira dos apaixonados, em uma associação à deusa grega, à qual sua imagem foi associada – mulher de pele clara, corpo escultural, cabelos longos e pretos, delicada e vaidosa – e, ainda, Nossa Senhora de Candeias, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Piedade e Virgem Maria.

“Mas Iemanjá é uma deusa negra iorubá e, não, a sereia grega de Ulisses! E não é virgem, como Nossa Senhora. Ela é guerreira, parideira, além de ser responsável, junto com Oxalá, pela criação dos seres humanos”, destaca Vilson Caetano, antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa).

Odoya! minha mãe

Uma das versões do mito da criação do mundo conta que é ela quem gera os orixás, junto com Olodumaré/Deus: 

“No princípio – como reproduz a Bíblia – ,Olodumaré está sozinho com o fogo e paira sozinho sobre as águas. Ele está bravo, sem consciência de si, até que surge Iemanjá e dá luz às estrelas, às nuvens, aos orixás…”

Outra versão sobre a criação do mundo conta que Iemanjá vivia só no Orum, a morada dos deuses, até que Olodumaré decide que ela precisa de uma família – ter com quem comer, conversar, brincar, viver… Então, do estômago da orixá nascem todas as estrelas. Mas elas vão fixar-se na abóbada celeste. E Iemanjá continua solitária.

Ibá de Iemanjá no terreiro de candomblé do Ilê Axé Ijino Ilu Oróssi, Brasil. (Imagem: Toluaye | Wikimedia Commons)
Ibá de Iemanjá no terreiro de candomblé do Ilê Axé Ijino Ilu Oróssi, Brasil. (Imagem: Toluaye | Wikimedia Commons)

Aí, de sua barriga crescida, nascem as nuvens que perambulam pelo céu até se precipitar em chuva sobre a terra. E a yabá fica sozinha, de novo. 

Numa terceira “gravidez”, nascem Xangô, Oiá, Ogum, Ossaim, Obaluaê e os Ibejis que lhe fazem companhia.

Só depois Oxalá cria a Humanidade com a ajuda de Nanã.

Uma terceira versão do mito da criação do mundo conta que suas águas se tornaram salgadas em um momento de muita dor e ódio – ela tem um filho lindo, invejado e que é condenado injustamente. Por vingança, ela decide que a humanidade não iria mais beber água doce – essa primeira leva da humanidade morreu.

Nosso divã

Mãe das águas salgadas, orixá fundamental no desenvolvimento da Mitologia Africana e nos aspectos simbólicos da nossa psique, maternal, boa conselheira, voluntariosa, calma na aparência e agitada no íntimo, emotiva, com tendência a se afastar, feminista da primeira hora, Iemanjá está na formação de tudo!

O mar onde reina é lindo, inspirador, traz os peixes, a navegação, mas é sem qualquer controle, como a nossa inconsciência.

Carl Jung, “pai da psicanálise”, não por acaso, ensina que a inconsciência é a mãe da consciência. Nossa cabeça vem do inconsciente – e Iemanjá é a mãe de todos os oris, de todas as cabeças.

Na Mitologia Grega – que também se apropria da Mitologia Africana, como o Cristianismo -, temos Ulisses que, navegando, passa por um lugar onde existem sereias, que o seduzem – “devoram” -, fazendo com que perca a consciência de si mesmo.

Descanso do Sol

Iemanjá salva toda a humanidade das forças do sol – conta outro mito – e garante a subsistência e a existência do nosso planeta ao criar Oxu, a Lua! 

“Orum, o sol, nunca descansava e a vida na Terra estava morrendo. Tudo estava torrando. Preocupada, ela sugere que ele vá descansar. Ele aceita a sugestão e vem a escuridão… Mas, esperta, Iemanjá tinha guardado alguns raios de sol embaixo da sua saia, raios que deram origem a uma outra fonte de luz, Oxu, a Lua, um frescor para toda a humanidade – dia e noite, sol e lua, trabalho e descanso, consciência e inconsciência, sentir e não sentir.” 

Iemanjá é vida e morte – ou vida e vida! Promove a integração dos opostos, inclusive entre homens e mulheres, combate nossa tendência ao unilateralismo, que esgota nossa mente e nosso físico.

Todos precisamos de pausa, de descanso – e Iemanjá garante isso, do jeitinho que está na Gênesis – Deus descansou no 7º dia! Tudo tem o seu limite, a sua duração. Tempo de trabalho, de viver, amar, abraçar – e, mais uma vez a Bíblia, reproduz a Mitologia Africana, a espiritualidade matriz.

Homem & Mulher

O feminismo, a igualdade de gênero, nasce com Iemanjá e também aparece em outro mito, com Orunmilá – ligado ao jogo dos búzios, o babalaô, aquele que conhece os mistérios, dá conselhos… 

“Um dia, Orunmilá viajou, demorou a voltar e o dinheiro acabou. Sozinha, sem recursos, Iemanjá decide jogar búzios, dar conselhos – de tanto observar, ela sabia como o marido fazia. Não demora, forma uma clientela expressiva e começa a ganhar dinheiro. Quando Orunmilá volta, se depara com uma fila de pessoas querendo ser atendida por ela, fica indignado, mas reconhece o seu talento.”

E é a partir daí que as mulheres começam a exercer o ofício de sacerdotisa – de promover a consciência. Até então, só os homens podiam exercer a função.

Na prática, na integração dos opostos, se recolhe e acolhe o que é desprezado, integrando-o à consciência. Todo mundo tem direito e capacidade para fazer tudo.

E quem criou Iemanjá?

São duas histórias. Na primeira, ela é filha de Olokún, deus do oceano, um dos mais perigosos e poderosos do culto aos orixás. Impulsivo e violento, fazia muitos inimigos. Por isso, deu à sua filha, ainda criança, uma poção para protegê-la dos perigos.

O tempo passa. Iemanjá mora em Ifé, casa com Oduduá e tem dez filhos. Amamenta a todos, fica com os seios grandes e é ridicularizada pelo marido. 

Constrangida, ela foge e vai para Abeokutá, mas não consegue se esconder. Sua beleza chama a atenção do rei Okerê, que lhe pede em casamento. Ela aceita desde que ele jamais a humilhe por causa dos seus seios fartos

O rei concorda, mas um dia, embriagado, esquece da promessaIemanjá vai embora e ele, furioso, dá ordens aos seus soldados para capturá-la. 

Durante a perseguição, Iemanjá tropeça e cai e o vidrinho com a poção, que carregava desde a infância, quebra e se transforma em um turbulento rio que a leva para o oceano.

Iemanjá (Imagem: Reprodução)
Iemanjá (Imagem: Reprodução)

Okerê tenta impedir a fuga transformando-se em uma grande colina, mas ao ver o bloqueio, a sereia pede ajuda ao seu filho Xangô, que lança um raio sobre a barreira, dando passagem ao rio.

A segunda história sobre a origem da Rainha do Mar é de que ela seria filha do casal primordial e propulsor da criação – Odudua, que representa a divinização da terra, e Obatalá, criador dos humanos.

Deste casamento, além dela, nasce o seu irmão Aganju, o orixá da transformação, associado aos vulcões e a tudo que precisa explodir e romper barreiras, para que haja mudança.

Iemanjá e Aganju têm uma relação incestuosa e nasce Orungã, divindade iorubá dos ventos, que se apaixona pela mãe e um dia, na ausência de seu pai, pensa em violá-la

Percebendo o perigo, Iemanjá corre. Durante a perseguição, tropeça, cai de costas e morre. No mesmo instante, seu corpo se desfaz e seus seios se transformam em duas correntes de água que se unem e formam um lago. Do seu ventre, nascem alguns orixás.

Resistência

Mesmo descaracterizada, a orixá iorubá é uma das mais celebradas fora do catolicismo. De acordo com o antropólogo Vilson Caetano, da UFBa, para aproximá-la mais da tradição cristã, sua representação foi perdendo características negras e ressaltados os aspectos ligados à maternidade, em alusão à Maria, mãe de Jesus:

“O embranquecimento da imagem de Iemanjá faz parte do processo perverso de negação da presença da população negra, de origem africana, na sociedade brasileira. A partir do século XIX, o termo preto foi sumindo dos livros de batismo e os deuses africanos foram sendo associados a santos. Colocar máscaras brancas em deuses negros é a negação da nossa identidade e da nossa condição de país mais negro fora do continente africano.

Leia o artigo A cor sempre roubada, sobre outros pretos e pretas presentes na nossa história, na nossa literatura, na nossa política, que tiveram sua origem africana invisibilizada.

O que se sabe é que Iemanjá viajou com o povo africano na travessia do oceano Atlântico, e acolheu todos que se lançaram ao mar na defesa da própria liberdade, negando-se à escravização.

Iemanjá chega ao Brasil da mesma forma que é cultuada em suas origens: mulher negra, metade humana, metade peixe, ancas largas, braços fortes, cabelos longos, negros e seios fartos.

Sua figura materna fortalece os escravizados. Daí sua aproximação à imagem de Nossa Senhora, uma vez que a fé dos escravizados era proibida de ser praticada pela igreja católica.

Daí, os africanos escravizados elegerem santos católicos para simbolizarem suas divindades – e é curiosa a “coincidência” entre as jornadas dos orixás, que existem desde sempre, e dos santos católicos, criados depois da oficialização do catolicismo como religião oficial da Europa no século III, pelo imperador Constantino.

Sincretismo

Iemanjá é uma orixá que representa amor, compaixão, perdão, maternidade e fertilidade, logo uma santa com as mesmas características teria que lhe representar. 

Por isso, ela, Iemanjá, é celebrada várias vezes no ano…

Em 2 de fevereiro, em Salvador, Bahia, acontece o maior evento popular dedicado à orixá.

No Rio de Janeiro, os festejos para a deusa do mar estão associados ao rito da passagem de ano e acontecem no 31 de dezembro

No dia 8 de dezembro, Iemanjá é Nossa Senhora da Conceição no Brasil e, em 15 de agosto, é homenageada com a Assunção de Nossa Senhora.

Altar de Iemanjá em templo em Trinidad (Cuba), com insígnias do sol e da lua (Imagem: Dominique Michel | Wikimedia Commons)
Altar de Iemanjá em templo em Trinidad (Cuba), com insígnias do sol e da lua (Imagem: Dominique Michel | Wikimedia Commons)

Cuba também celebra cultos para Iemanjá e a festividade ocorre em 8 de setembro, mesmo dia da Virgem de la Regla, a Nossa Senhora da Natividade.

No continente africano, Iemanjá é cultuada em águas doces, mas aqui no Brasil os lagos, rios e cachoeiras são de Oxum.

Diz-se que sua voz doce é capaz de acalmar corações aflitos, deixando somente a paz. Ela protege pescadores, navegadores, capitães, marinheiros, jangadeiros e todos que frequentam o seu mar.

Reparação?!

Em 2 de fevereiro de 2023, acontece a comemoração do centenário da maior celebração da cultura afro-brasileira da Bahia, a Festa de Iemanjá uma tradição que começa em 1923, quando pescadores da Colônia de Pesca Z1 resolvem oferecer presentes à rainha do mar para que haja fartura de peixes

Na celebração, Iemanjá resgata-se. Volta a ser da África também na aparência: mulher preta, com traços negróides e cabelos com dreads. O livramento ancestral é obra do artista plástico negro Rodrigo Siqueira.

Mas a escultura de 1,40 metro de altura, produzida em uma estrutura metálica combinada com resina de vidro e mármore, com elementos da água, como conchas e búzios naturais importados da Indonésia, não ficará no altar da colônia dos pescadores. Lá, permanecerá a versão branca da orixá!


Fontes: Geledés, Wikipédia, O Globo, BBC, Educlub, Significados, Instituto Freedom – curso Mitologia Afrobrasileira e Psicanálise, Bíblia Sagrada, O Candomblé, Mulheres de Luta, PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás, Terra

Editado em junho 2023

Iemanjá: A Força Maternal das Águas e Sua Presença Atemporal na Cultura Africana

Iemanjá, oriunda da mitologia iorubá, é uma figura emblemática que transcende a simples compreensão de uma deusa das águas. Representando a maternidade, proteção e fertilidade, ela é celebrada por sua capacidade de acalmar corações e proteger seus devotos. A deusa, que é frequentemente sincretizada com figuras católicas como Nossa Senhora, simboliza a intersecção entre diferentes culturas e religiões, refletindo a rica tapeçaria da diáspora africana. Sua história é marcada por mitos de criação, resistência e empoderamento, fazendo dela uma figura central na espiritualidade afro-brasileira e na luta contra a opressão.

Quem é Iemanjá na mitologia iorubá? Iemanjá é uma deusa iorubá, conhecida como a mãe dos peixes ou “Yèyé omo ejá”, simbolizando a maternidade, proteção, e a criação do mundo junto a Olodumaré/Deus.

Como Iemanjá é celebrada no Brasil?No Brasil, Iemanjá é celebrada em várias datas, sendo as mais notáveis em 2 de fevereiro em Salvador, Bahia, e em 31 de dezembro no Rio de Janeiro, associada a rituais de passagem de ano.

O que simboliza Iemanjá? Iemanjá simboliza amor, compaixão, perdão, maternidade, e fertilidade, sendo uma figura de proteção para pescadores, navegadores, e todos que frequentam o mar.

Qual é a relação de Iemanjá com o sincretismo religioso? Iemanjá é frequentemente associada a figuras católicas como Nossa Senhora, refletindo o sincretismo religioso entre as crenças africanas e o catolicismo, especialmente entre os africanos escravizados no Brasil.

Como Iemanjá influencia a luta contra a opressão? A figura de Iemanjá, especialmente em sua representação mais autêntica e africana, simboliza resistência contra a negação da identidade africana e empoderamento feminino, destacando a importância da diversidade cultural e da luta contra a opressão.

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