Líder quilombola do século XVIII, rainha Tereza de Benguela combate o escravismo e coordena atividades econômicas e políticas do Quilombo do Quariterê na fronteira do Mato Grosso com a Bolívia no século XVIII. Sua liderança e estratégias de defesa transformaram o quilombo em um símbolo de luta e liberdade e confirma a força e a resiliência da mulher negra na história do Brasil.
O que este artigo responde: Quem foi Tereza de Benguela? Qual era a localização do Quilombo do Quariterê? Como Tereza de Benguela liderou o quilombo? Qual é o significado do Dia Nacional de Tereza de Benguela? Como Tereza de Benguela é lembrada hoje? Como foi a morte de Tereza de Benguela? O que quer dizer o Benguela no nome de Tereza de Benguela?
No 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, data em que no ano de 1992 mulheres negras se reuniram em Santo Domingo, na República Dominicana, para denunciar o racismo e o sexismo, é também o Dia Nacional de Tereza de Benguela, Lei nº 12.987/2014.
Mas que se registre que foram necessários 240 anos para que isso acontecesse!!!
A lei foi assinada pela então presidenta Dilma Rousseff em 2 de julho de 2014!!!
O sangue de Tereza de Benguela, entretanto, não fica empoçado quando de sua morte. Ao contrário, penetra na terra e faz germinar outros quilombos, outras estratégias de resgate da nossa liberdade sequestrada…
Mulheres negras são férteis para parir líderes, ideias, construir resistências, semear re-existências. E não importa quanto tentem apagar, silenciar, tornar invisível, impossível todo este potencial.
Ressignificar a vida vivida por mulheres negras na história do Brasil é fundamental para a construção do auto respeito, para o autocuidado, para a libertação real do povo preto.
E o melhor – que vale destaque – é que essas histórias vêm ganhando corpo e visibilidade a partir do protagonismo de mulheres negras, organizadas em coletivos, na academia, na literatura, nas artes, na ciência, na pesquisa, em todos os espaços…
Mulheres negras como Tereza de Benguela, Dandara, Akotirene, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Esperança Garcia, Auta de Souza, Enedina Alves Marques, Antonieta de Barros, Laudelina de Campos, Carolina Maria de Jesus, Djamila Ribeiro, Erika Hilton, Áurea Carolina e tantas outras romperam o silêncio, apesar do açoite, da violência econômica, social e policial, do genocídio, do feminicídio…
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Em nós, o fundamento da resistência da sociedade inclusive nos dias atuais, apesar de todas as tentativas de nos calar que contrastam com a dependência que a sociedade tem dos serviços que prestamos, seja a limpeza das ruas, o cuidado das crianças, a assistência à saúde…
O valor de uma data
É verdade que vivemos em uma sociedade que cria dia de absolutamente tudo – fatos importantes e outros nem tanto… Mas as datas são valiosos instrumentos históricos para que reflitamos, como povo, sobre temas fundamentais para a ressignificação de quem somos como povo e sociedade.
Celebrar Tereza Benguela é colocar em foco questões que afligem as mulheres negras, como o racismo, a opressão de gênero e a exploração, a baixa representação política, a ausência de direitos sexuais reprodutivos, família, maternidade, paternidade, sexualidade…
Questões de todos os tempos sem respostas inclusivas e respeitosas, ainda! As quais, queiramos ou não, afetam a vida de todos os seres do planeta! Todos precisamos de todos!
Vida e morte
Tereza de Benguela, escravizada fujona – com muito orgulho – , organiza fugas não só de mulheres, mas de homens, negros e indígenas que, como ela, tiveram a liberdade sequestrada.
O Benguela, de seu nome, faz referência a uma das 18 províncias de Angola, no continente africano.
Ela é quem dá visibilidade ao papel da mulher negra na história brasileira. E faz isso liderando a resistência contra o governo escravista português; assumindo o comando das atividades administrativas, econômicas e políticas do Quilombo do Quariterê; criando estratégias de organização e defesa; trocando armas e alimentos com brancos e expropriando vilas.
Reina por quase 20 anos até que, em 1770, um ataque das forças portuguesas ao Quariterê com saldo de muitos feridos, muitos mortos e muitos capturados para a morte. Entre os últimos, Tereza de Benguela. Mas nada acontece sem luta!
Sob liderança de Teresa, os quilombolas revidaram com arma de fogo, além de flechas, mas não foi o suficiente. A expedição que saiu em direção ao quilombo tinha a missão de destruí-lo.
As penas aos que foram capturados incluía humilhação, volta ao cativeiro com o “F”, gravado na pele de quem busca a liberdade – a marca de “escravo fujão” -, tortura e assassinato.
No caso da Rainha Tereza de Benguela, também por ser mulher. Ela foi vítima de feminicídio com requintes de crueldade. Exposta em uma cela em praça pública, tratada com palavras rudes na frente de seus antigos comandados, ficou muda, morreu dias depois, teve sua cabeça cortada e colocada no alto de um poste no centro do quilombo.
No Anal de Villa Bela da Santíssima Trindade do Ano de 1770, a história se confirma:
Após a captura, “em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela, se lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele quilombo, em um alto poste, onde ficou para memória e exemplo dos que a vissem”.
Mas não deu certo a ideia da morte da líder para fazer com que os escravizados se resignassem à escravidão. A coragem e a resistência daquela mulher negra estava viva na memória da maioria que conseguiu fugir.
O Quariterê se reorganizou em 1777. Mas, em 1795, uma nova ofensiva do exército e dos fazendeiros destruiu fisicamente aquele espaço de liberdade e resistência.
Quilombo do Quariterê
Localizado na Serra dos Parecis, próximo ao Rio Guaporé e da Villa Bela da Santíssima Trindade – capital do estado entre 1752 e 1820 -, fronteira do antigo Mato Grosso com a Bolívia, a 521 km de Cuiabá, o Quilombo onde Tereza reinava era uma região rica em minerais.
Tais riquezas atraíram os colonizadores portugueses, garantindo a expansão não só da população branca, mas dos povos negro e indígena escravizados.
Estima-se que no quilombo viviam entre 100 e 200 pessoas em liberdade, que haviam fugido do trabalho forçado.
Tereza assume o poder ao mesmo tempo que os portugueses chegam por lá. E comanda a estrutura política, econômica e administrativa do quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas com os brancos ou roubadas das vilas próximas.
O Quariterê se mantém com o cultivo de milho, feijão, banana, mandioca e algodão – utilizado na fabricação de tecidos e roupas que são comercializados fora do quilombo, bem como os excedentes da produção agrícola.
Detalhe: os objetos de ferro utilizados contra a comunidade negra que lá se refugiava, no quilombo, se transformam em instrumento de trabalho para a agricultura, visto que todos dominavam o uso da forja.
Para governar, a rainha desenvolve um sistema de parlamento, com reuniões periódicas dos “deputados” para decidir sobre a administração do lugar, sob a coordenação do conselheiro José Piolho, parceiro de Tereza, que esteve à frente do então conhecido como Quilombo do Piolho, nas décadas de 1730 e 1740.
“Governava esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entrava os deputados, sendo o de maior autoridade, tipo por conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais. Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executava à risca, sem apelação nem agravo.” – como consta do Anal de Villa Bela do Ano de 1770.
Segundo registros históricos, também, o Quilombo do Quariterê era chamado também de Quilombo do Piolho devido às raízes indígenas que formam a palavra: Guariteré – “piolho” em tupi-guarani.
Futuro incerto
Quariterê resistiu às forças portuguesas de 1730 a 1795. E por duas décadas, entre 1750 e 1770, sob a direção de Tereza de Benguela, a única mulher rainha de Quilombo, de acordo com a presidente do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso, Antonieta Luísa Costa:
“Tivemos a única mulher que foi rainha de um quilombo e que mostrou a importância e a força da mulher negra em todos os espaços desde a época da colonização”.
Para Antonieta Costa, reverenciar Tereza de Benguela, “transportando-a” do século XVIII para o século XXI, e dar visibilidade à mulher negra nos tempos atuais:
“… O mais importante é chamar a atenção da sociedade e do Poder Público. Essa invisibilidade e a falta de políticas voltadas para esse grupo precisam ser discutidas. Todas as estatísticas apontam a mulher negra em situação de vulnerabilidade. Quando se trata de inferioridade e exclusão, estamos sempre no topo”.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mais da metade da população do Brasil é negra e 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza.
Números do mesmo IBGE apontam, ainda, que ser mulher negra no Brasil significa sofrer com uma intensa desigualdade, como no campo profissional, por exemplo, 71% das mulheres negras estão em ocupações precárias e informais, contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos. O salário médio da trabalhadora negra continua sendo a metade do salário da trabalhadora branca.
Estudos indicam, também, que as mulheres negras permanecem sendo as mais exploradas e negligenciadas socialmente.
O Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2021 informa que entre as vítimas de feminicídio, 61% eram negras, 36,5% brancas, 0,9% amarelas e 0,9% indígenas. Entre as vítimas dos demais homicídios femininos, 71% eram negras, 28% eram brancas, 0,2% indígenas e 0,8% amarelas.
O resgate
Protagonismo tardio? Sem dúvida! Mas somos ancestrais. Buscar o passado para ressignificar o presente e construir o futuro que queremos viver é o que importa.
Foram mais de dois séculos de esquecimento, mas Tereza de Benguela vem sendo resgatada em sua potência e referenciada cada vez mais.
Sua história está registrada na obra 15 Heroínas Negras Brasileiras, uma coletânea de cordéis escritos por Jarid Arraes e publicada em 2020 pela Editora Seguinte; na Enciclopédia Negra, de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz, publicada em 2021 pela Companhia das Letras; em sites diversos, como pode ser constatado nas fontes que usamos para construir este texto.
No samba – sempre instrumento de resistência negra – ela se fez presente no enredo “Tereza de Benguela, rainha negra do Pantanal” da escola de samba Unidos do Viradouro do Rio de Janeiro, em 1994 – vinte anos antes de a Lei 12.987/2014 ser promulgada – e no enredo “Benguela… A Barroca Clama a Ti, Teresa”, da escola de samba Barroca Zona Sul, de São Paulo, em 2020 – 250 anos após a sua morte.
E estes são só exemplos.
Todo dia é dia de celebrar as mulheres negras brasileiras que sobrevivem à dura realidade de ser quem são em um país que glorifica, ainda, a sua história colonial e escravista, sem culpa ou até mesmo vergonha.
E, neste ponto, me permito referenciar outra mulher negra, a acadêmica portuguesa Grada Kilomba, no prefácio livro “Memórias da Plantação”, quando se refere à importância da conscientização coletiva de uma nação:
“…uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da história colonial, não permite que seja a responsabilização, e não a moral, a criar novas configurações de poder e de conhecimento….”
Justiça restaurativa é a meta!
Escrito em 30/12/2022 – atualizado 17/6/2024
Fontes: Brasil de Fato, Wikipédia, Capiremov, G1, Geledés, Fundação Palmares
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