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Mãe Menininha do Gantois, a ialorixá das ialorixás

Líder espiritual que, com sua força e sabedoria, transcendeu as barreiras da religião dos homens para tornar-se exemplo de estratégica resistência. Mãe, mulher, “instituição nacional”, Menininha do Gantois é considerada a maior do Brasil, exemplo de respeito aos caminhos de conexão com o divino, para além das raízes africanas.

O que este artigo responde:
Quem foi Mãe Menininha do Gantois?
Como Mãe Menininha do Gantois influenciou a sociedade brasileira?
Qual o impacto de Mãe Menininha no candomblé?
Por quanto tempo Mãe Menininha esteve à frente do Terreiro do Gantois, em Salvador?
Mãe Menininha era católica?
Qual era a relação de Mãe Menininha com o catolicismo?
Quem era Maria Escolástica da Conceição Nazareth?
Como Mãe Menininha do Gantois é lembrada hoje?

Artigo por Beth Brusco*

Mãe Menininha do Gantois (Imagem: Acervo UH | Folhapress)
Mãe Menininha do Gantois (Imagem: Acervo UH | Folhapress)

“Ai! Minha mãe
Minha mãe Menininha
Ai! Minha mãe
Menininha do Gantois
A estrela mais linda, hein
Tá no Gantois
E o sol mais brilhante, hein
Tá no Gantois
A beleza do mundo, hein
Tá no Gantois
E a mão da doçura, hein
Tá no Gantois
O consolo da gente, ai
Tá no Gantois
E a Oxum mais bonita hein
Tá no Gantois
Olorum quem mandou essa filha de Oxum
Tomar conta da gente e de tudo cuidar
Olorum quem mandou eô ora iê iê ô”

 A música Oração de Mãe Menininha é de Dorival Caymi, aqui, na voz de Clementina de Jesus 

Ialorixá é o nome correto para o popular “mãe de santo”. E Maria Escolástica da Conceição Nazareth, a Mãe Menininha do Gantois, referência nacional, já nasce à frente do seu tempo em 10 de fevereiro de 1894.

Na época, o povo negro estava oficialmente liberto. Mas, como no presente, perseguição, preconceito e discriminação racial são as marcas mais visíveis da sociedade. 

Ainda assim, ela insere o candomblé – das regiões onde hoje estão os países da Nigéria e do Benin, no continente africano – no meio da classe política, da classe artística, da intelectualidade, entre os que têm poder e dinheiro. 

O termo candomblé vem da junção das palavras quimbundo candombe (dança com atabaques) + iorubá ilê (casa), que significa casa da dança com atabaques. 

Conquista até “benesses” até da igreja católica, a mesma que nos “batizou” para a escravidão

 “Mãe Menininha era uma voz de consenso, era a voz que todos ouviam para saber como as coisas deveriam ser direcionadas. Era a ialorixá das ialorixás, aquela diante de quem todas as mais velhas da Bahia se curvavam por tudo o que ela representava…”

– Rodney William Eugênio, sociólogo, antropólogo e babalorixá

Celebridade

Mãe Menininha incorpora um peso sociopolítico tão importante durante a sua jornada, a ponto de autoridades políticas, artistas, esportistas, intelectuais, a procuravam antes de tomar grandes decisões

Todos queriam seus conselhos, sua proteção. Sabiam da sua influência, a força do seu carisma, seu poder de encantamento.

A maioria não era filho de santo do Terreiro de Gantois. Mas todos se consideravam “amigos muito próximos”. Entre eles, políticos como o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e outros tantos, que vieram antes, como Getúlio Vargas, João Goulart e João Baptista Figueiredo, além dos parlamentares Antônio Carlos Magalhães, João Durval Carneiro, Paulo Maluf e Adhemar de Barros.

Sua casa era frequentada também por atletas como Pelé, Roberto Dinamite e Djalma Santos; escritores como Jorge Amado; artistas plásticos como Calasans Neto, Mário Cravo Júnior e Carybé; pelo mestre de capoeira Camafeu de Oxóssi e por músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Dorival Caymmi, que compôs a canção que abre este artigo.

“… As ialorixás baianas, todas elas, têm uma história de luta política muito grande. E, por meio das relações que foram tecendo com as pessoas das artes e da política garantiram a sobrevivência do candomblé”.
 
– Historiador e pai de santo Guilherme Watanabe

Disputa de poder

A fake news da democracia racial faz com que, até hoje, tenhamos um olhar equivocado para a relação da igreja católica com tudo que vem de África.

É o catolicismo que determina que pessoas nascidas em África não têm alma, que têm sangue servil. É o catolicismo que “transforma” Exu em diabo! São os que se autodenominam representantes de Deus na Terra que maculam os corpos negros…

É fato que a história oficial se refere a Mãe Menininha como pioneira ao garantir o direito, junto aos religiosos católicos da Bahia, de as mulheres entrarem na igreja vestindo trajes típicos do candomblé.

Não se pode perder de vista, entretanto, que, é o catolicismo, a serviço da coroa portuguesa, que rouba o nome e a vida das pessoas pretas raptadas, traficadas e escravizadas na África e no Brasil.

Maria Escolástica da Conceição Nazaré era mais conhecida como Mãe Menininha do Gantois (Foto: Acervo Terreiro do Gantois via BBC)
Maria Escolástica da Conceição Nazaré era mais conhecida como Mãe Menininha do Gantois (Foto: Acervo Terreiro do Gantois via BBC)

A conversão dos africanos e dos nascidos deles nos Brasil sempre foi uma imposição da igreja católica.

Não à toa, Mãe Menininha se declara católica e praticante. Devota de Santa Escolástica, de quem empresta o nome, ela frequenta as missas até o fim da vida

Subserviência apreendida? 

Não!

Ser católica era uma estratégia de sobrevivência!

E essa “dupla pertença” – candomblecista e católica -, acreditam os historiadores, foi fundamental para a promoção do diálogo inter-religioso, que ela conduziu em sua vida inteira. 

Seu trabalho é visto como sinônimo de respeito e influência na sociedade baiana do século 20 – jornada de resistência e de alianças diante da intolerância religiosa. 

Missão

O bebê, que recebe o nome de Maria Escolástica, nasce na casa de candomblé Ilé Ìyá Omi Àse Ìyámasé, o Terreiro do Gantois, que, 28 anos depois, iria liderar por mais de seis décadas – feito inédito até porque as ialorixás costumam ser anciãs.

Essa realidade transformada, da jovem ialorixá, é inclusive um dos fundamentos para explicar como Escolástica virou Mãe Menininha. 

O que se conta é que a ialorixá Pulchéria Maria da Conceição, sua tia-avó, responsável por sua iniciação no candomblé, foi quem lhe deu o apelido Mãe Menininha, pelo fato de ela ter assumido o terreiro muito jovem, uma “menininha”!

Mas não existem certezas a respeito. Mãe Menininha mesmo dizia que, desde a infância, era chamada assim por sua mãe, tia e avó.

E, de fato, Maria Escolástica é escolhida para ser ialorixá, ainda criança. Aos seis anos, ela já dançava o candomblé, a dança com atabaques. 

Aos oito, foi iniciada para Oxum – deusa das águas doces, do ouro, da fecundidade, do jogo de búzios e do amor. Sua seriedade e respeito com as atividades do Terreiro tornaram evidente o seu potencial para liderar. 

Leia sobre orixás no artigo Yabás, as orixás femininas.

Todo terreiro segue regras tradicionais de manutenção dos laços parentais, onde quem comanda é sempre do sexo feminino, obedecendo aos critérios de hereditariedade e consanguinidade.

Descendente de africanos escravizados bisneta da nigeriana Maria Julia da Conceição Nazareth, responsável pela fundação do Terreiro em 1849 -, Maria Escolástica torna-se a sucessora natural da casa depois da morte de sua mãe durante o período de luto de sua antecessora, a ialorixá Pulquéria Maria da Conceição. 

Menininha não queria a responsabilidade para si e resistiu até 18 de fevereiro de 1922, quando os orixás confirmaram o seu lugar como o de número 1 da casa. 

Assim, a filha única de Maria da Glória e Joaquim Assunção se tornou a terceira ialorixá da história do Gantois, em Salvador (BA). 

Contradições do Brasil

O terreiro Ilé Ìyá Omi Àse Ìyámasé ficou popularmente conhecido como Terreiro do Gantois porque este era o nome do antigo proprietário das terras onde ele foi instalado. 

Aí, uma das muitas contradições da história negra no Brasil: o belga Édouard Gantois era traficante de escravos! Arrendou as terras para a bisavó de Mãe Menininha.

O terreno, em um bosque de difícil acesso, na área alta da cidade, ficava protegido das batidas policiais bastante comuns na época.

Resistência branca 

No tempo da ialorixá, a Lei de Jogos, Costumes e diversões públicas, de 1930, enquadrava as práticas religiosas africanas como crime, caso não fossem respeitadas algumas regras, como horário de funcionamento, pagamento de taxas…

Em nome dessa lei, a violência policial nos terreiros era uma constante, com apreensão de objetos sagrados e agressão a sacerdotes, sacerdotisas e participantes.

Mãe Menininha do Gantois (Imagem: CMS)
Mãe Menininha do Gantois (Imagem: CMS)

A situação só melhorou em 1976, quando o então governador baiano Roberto Santos sancionou decreto liberando as casas de candomblé de seguirem o mesmo licenciamento previsto pela legislação de jogos, costumes e diversões públicas

Menininha trabalhou muito por isso e, só assim, as coisas para o povo do terreiro passaram a ser menos piores.

Ponte para a PAZ 

A abertura das portas do Gantois para brancos e católicos, em especial, também aparece na história como “garantia” de convivência mais pacífica com a políciacom o samba aconteceu a mesma coisa

A branquitude não só “promove a boa convivência” entre as diversas crenças e as diferentes classes sociais, como se apropria do conhecimento espiritual e do protagonismo dos afrodescendentes na manifestação da espiritualidade.

Ancestral

Em 13 de agosto de 1986, o coração físico de Mãe Menininha para de bater. Ela está com 92 anos. O diagnóstico? Causas naturais. Se na carne, em 2022, ela teria completado 100 anos como ialorixá. Mas o que importa mesmo é que Mãe Menininha é ancestral.

Ancestralidade – compreenda-se – é a permanência da existência e, no caso dela, também materializada por ensinamentos importantes para a perpetuação do olhar africano para o que é a espiritualidade do ser.

Mãe Menininha contribuiu de muitos modos para o respeito à diversidade religiosa, para a difusão da cultura e para o conhecimento das tradições afro-brasileiras. Manteve vivos os costumes e o legado milenar dos povos Iorubá (Abeokutá), preservando o culto aos orixás.

A mitologia é rica nas versões do nascimento dos orixás. E não existe versão certa ou errada, verdadeira ou mentirosa. Isso porque mito não é sinônimo de mentira. Mito é uma história. A Mitologia é uma narrativa de histórias que contam de nosso inconsciente, da nossa matriz. Os atributos dos orixás estão presentes na psique de qualquer mortal, seja ele iniciado ou não. Todos temos, na base, a espiritualidade africana, independentemente de nossa origem continental.

Sua vida se confunde com a história do candomblé no Brasil, não só por descender de família de linhagem africana, mas também por sua presença, discreta, nas altas esferas de poder, defendendo a liberdade religiosa. 

Na cultura popular

Em 1976, Mãe Menininha foi homenageada no carnaval carioca com o enredo da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel – o samba foi interpretado por Elza Soares. No ano seguinte, São Paulo celebra sua existência com o enredo Vai-Vai é toda axé, força motriz de transformação!

“Mãe Menininha está acima de toda e qualquer divergência de ordem política, econômica ou religiosa (…) É a ialorixá de todo o povo da Bahia, sua mão se estende protetora sobre a cidade. Não se trata nem de misticismo nem de folclore e sim de uma realidade do mistério baiano”.
(registra o livro Bahia de Todos-os-Santos, do escritor Jorge Amado)

Segue a intolerância

Como a evolução não dá saltos, para as religiões de matriz africana os tempos foram e continuam sendo bastante sombrios. O racismo está no DNA da sociedade.

O II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, disponibilizado em janeiro de 2023, aponta para uma média de três denúncias de intolerância religiosa por dia!

A publicação, organizada pelo Centro de Articulação das Populações Marginalizadas e pelo Observatório de Liberdades Religiosas, traz dados alarmantes sobre o crescimento do discurso de ódio.

Mulher sacerdotisa

Mãe Menininha foi mãe, mulher, líder religiosa e é considerada uma instituição nacional. Casada com o advogado Álvaro MacDowell de Oliveira, teve duas filhas, Cleusa – que a sucedeu no comando do terreiro – e Carmem, a atual ialorixá.

Antes e durante o exercício de liderança do Gantois, Menininha trabalhou como “modista e fina doceira”, informa sua sinopse biográfica oficial. Mas não só ela! 

Mulheres sacerdotisas, ialorixás, sempre tiveram outras atividades associadas à atividade principal, o terreiro. Tal prática – analisam os estudiosos – reflete uma realidade do período escravocrata, quando mulheres negras assumiam tarefas na cozinha e tinham o benefício da alforria.

Essa rotina teria dado a elas mais condições para assumirem o serviço religioso, aliado a um processo de ganho para a manutenção do terreiro e dos trabalhos religiosos.

Leia também baiana do acarajé, pioneirismo e ancestralidade maculada, artigo sobre as primeiras empreendedoras do Brasil, ativistas e guardiãs de nossa espiritualidade.

O Terreiro do Gantois ou Ilé Ìyá Omi Àse Ìyámasé – no registro oficial Sociedade São Jorge do Gantois -, desde 2002, é patrimônio histórico nacional, tombado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.


Fontes: Geledés, Iser, Museu Afro Brasil, Terreiro do Gantois, G1, Educa Mais Brasil, III Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe

Com a Redação
Março de 2023 / Atualizado em maio de 2024

1 comentário em “Mãe Menininha do Gantois, a ialorixá das ialorixás”

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