Pular para o conteúdo
InícioAfrodescendência, uma questão

Afrodescendência, uma questão

A palavra afrodescendente é formada por dois adjetivos: afro, que faz referência ao africano, e descendente que se refere à pessoa que provém por geração. Portanto, afrodescendente significa “descendente de africano”.

Sem Mordaça • Por Tania Regina Pinto

Afrodescendência, uma questão (Imagem: Reprodução)
Afrodescendência, uma questão (Imagem: Reprodução)

Em 31 de dezembro de 2024 termina a Década Internacional dos Afrodescendentes! Você sabia? Somos aproximadamente 200 milhões de pessoas vivendo nas Américas como afrodescendentes – e aqui estão contabilizadas só as pessoas autodeclaradas. Quanto ao Brasil, é o país com maior número de pessoas de ascendência africana fora da África. E muitas mais vivem em outras partes do mundo, além dos dois continentes.

Seja como descendentes das vítimas do tráfico transatlântico ou como migrantes, constituímos um dos grupos mais pobres e marginalizados do planeta. Pessoas afrodescendentes têm acesso limitado à educação de qualidade, aos serviços de saúde, à moradia digna e à segurança.

Todos somos, com frequência – percebamos ou não – discriminados pelo tom da nossa pele perante a justiça, pelos poderes constituídos e pela sociedade. Os índices de violência policial, com morte, são alarmantes, independentemente de idade. 

Nossa participação e representatividade política é baixíssima, tanto na votação quanto na ocupação de cargos públicos. Já chegamos à Presidência da República! Aqui, com Nilo Peçanha. Na outra América, com Barack Obama. E ficamos nos pioneiros!

A ideia dos Estados-membros das Nações Unidas de, por consenso, eleger os afrodescendentes como prioridade por 10 anos (?!), depois de mais de três séculos de escravização, também não rendeu frutos.

Denominada “Pessoas Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”, a década internacional foi marcada pelo movimento Vidas Negras Importam, a partir do assassinato pela polícia norte-americana de George Floyd, e pelo Blaxit, movimento de retorno dos afroamericanos para a África, em busca de sua cidadania ancestral.

Com os afro brasileiros, como exemplos do que aconteceu na década dos afrodescendentes, pode ser citado o aumento da população carcerária e da população de rua, formada por uma maioria de homens negros; a ausência de uma juíza ou juiz que represente o povo negro no Supremo Tribunal Federal;  o assassinato de nossas crianças e jovens pela polícia; a desigualdade salarial e a várias faces do racismo no cotidiano – ambiental, obstétrico, recreativo, religioso

A Resolução 68/237, de criação da década, estabeleceu que a partir de  1º de janeiro de 2015 os Estados-membros das Nações Unidas e a sociedade civil proporiam medidas concretas para promover a nossa plena inclusão, investiriam no combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância

Como dizia minha mãe, “o papel aceita tudo”! E a nossa luta continua para sair do absoluto, para compreender que não existe democracia racial, que depende de nós tirar o véu que nos impede de ver quem, de fato, somos: afrodescendentes, pessoas de origem africana.

Voltemos ao começo…

Afrodescendente

Oficialmente, o termo afrodescendente passa a ser adotado pelo mundo depois da conferência da Organização das Nações Unidas – ONU sobre racismo e xenofobia, realizada em Durban, África do Sul, em 2001 – mas no Brasil não deu muito certo e é preciso refletirmos sobre a razão.

Tal escolha se deu porque em alguns países africanos, de língua portuguesa, e outros americanos, de língua espanhola e inglesa, o termo “negro” era entendido com pejorativo e, na maioria das vezes, usado pelos brancos para ofender. Isso, desde a época dos primeiros escravizados e seus descendentes da diáspora.

Grupos  ativistas também defendiam o uso da expressão “afrodescendente” por ser praticamente a mesma palavra em português, espanhol, inglês ou francês, sendo, portanto, “universal”

Outro ponto a favor de se adotar a nova forma de nos identificarmos estava – e ainda está – diretamente ligado ao chamado “colorismo”, que tem no seu DNA o racismo estrutura. Em outras palavras, é um contraponto à ideologia da democracia racial, da miscigenação, do branq ueamento.

Um terceiro argumento, ainda, seria acabar com a confusão no uso das palavras “negro” e “preto” para nos identificar  – ambas criadas pelo colonizador.

O termo afrodescendente permite a visualização de  um grupo de origem ancestral africana, independente do fenótipo.

Isso tudo sem contar que, do ponto de vista histórico, o termo nasce, sobretudo, em decorrência da falta de conhecimento e da necessidade de relacionar o passado africano com a história do Brasil, como indica o professor Henrique Cunha Jr, no artigo A formação de pesquisadores negro, publicado na Revista Consciência.

Diáspora

A filósofa  Sueli Carneiro, do Geledés – Instituto da Mulher Negra –, escreve a respeito do conceito:

“A expressão afrodescendente resgata toda essa descendência negra que se dilui nas miscigenações, desde a primeira miscigenação que foi o estupro colonial, até as subsequentes, produto da ideologia da democracia racial. A expressão resgata a negritude de todo esse contingente de pessoas que buscam se afastar de sua identidade negra, mas que têm o negro profundamente inscrito no corpo e na cultura”.

Nesta perspectiva, assumir a expressão afrodescendente funcionaria como um antídoto ao processo de alienação que afeta os indivíduos – sugere o psiquiatra Frantz Fanon no livro Pele Negra, Máscaras Brancas, além de  o seu emprego estimular as nações a uma revisão das relações estabelecidas historicamente com os povos originários do continente africano. 

A celebração de vínculos, inclusive afetivos, com uma africanidade em parte resgatada e em parte construída a posteriori, no âmbito da diáspora negra no Brasil, fortalece do ponto de vista de resistência política ao rebaixamento social do qual é vítima esta população.

“Afrodescendente” é uma expressão extremamente ampla e abrangente, que contempla uma perspectiva de poder, à qual resistimos, talvez, por estupidez – estupidez que não tem a ver com ausência de inteligência, mas com ausência de consciência de si. 

Vale pesquisar sobre a  Teoria da Estupidez para ampliar a compreensão sobre questões nacionais, em geral, que incluem a nossa participação, por exemplo, na vida política do país.

Brasileiro?!

Há, por exemplo, quem defenda que a expressão afrodescendente secundariza o ser brasileiro – eu, particularmente, considero que faz sentido, uma vez que não somos contemplados de acordo com o artigo 5° da Constituição, que garante que todos são iguais!

O continente africano foi, durante mais de três séculos, o grande celeiro de mão de obra escravizada para a acumulação capitalista europeia e para os proprietários rurais e de minas nas Américas. 

Segundo alguns autores, cerca de 10 milhões de escravizados chegaram no continente americano entre 1502 a 1870. Ao longo desses séculos, também, se formou uma grande miscigenação entre europeus, principalmente portugueses, negros e índios. Mas poucos países do mundo passaram por uma miscigenação tão intensa quanto o Brasil.

Daí existir uma linha de intelectuais que considera que o conceito de afrodescendente não define a realidade brasileira, de país diversificado. Tal ponto de vista, entretanto, não leva em conta que, apesar de toda repressão e de toda a precariedade de vida imposta a nós, somos – como afrodescendentes – a maioria da população.

A jornada

O caminho para desfazer o mal feito sobre nós pelos escravocratas, pelos colonizadores, é investir na “contracolonização” –  propõe o quilombola José Bispo dos Santos, o Nego Bispo, autor de A Terra Dá, A Terra Quer, entre outras obras.

Ele explica:

Contracolonização é você querer me colonizar e eu não aceitar que você me colonize, é eu me defender. O contracolonialismo é um modo de vida diferente do colonialismo. (…) Podemos falar do modo de vida indígena, do modo de vida quilombola, do modo de vida banto, do modo de vida iorubá. Seria simples dizer assim. Mas se dissermos assim, não enfraqueceremos o colonialismo…”

O problema é que nós sequer nos reconhecemos como afrodescendentes. O problema é que nós queremos ser brasileiros, cantar para a nossa pátria mãe gentil (?!) Ainda resistimos ao fundamento do conceito afrodescendente e seguimos fortalecendo a linguagem e o olhar do colonizador para nós.

Não é verdadeiro o pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro, registrado no livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, de que uma vez desafricanizado pela escravidão e não sendo indígena nem branco, só restava para o contingente negro e mulato, assumir uma identidade plenamente brasileira.

Somos corpo-território

Eu, quando me defino como afrodescendente é porque primeiro vem a minha origem e, depois, a terra onde eu nasci. Do mesmo modo, aliás, que fazem, no Brasil, os originários do Oriente, da Europa… 

Como assumir como nosso um lugar onde somos estigmatizados? Onde nos “ensinaram” – e ainda ensinam – a ter vergonha das nossas origens, seja pelo fato de descender de escravizados, o que remete a um passado de humilhações e sofrimentos que deveria ser esquecido, ou pelos estereótipos negativos construídos em torno da negritude, associados a mazelas sociais, pobreza e criminalidade.

Eu pergunto: Quem é que tem de envergonhar-se pela escravização? Quem escravizou ou quem foi escravizado? Quem violou ou quem foi violado? Quem raptou ou quem foi raptado? Quem explorou ou quem foi explorado? Quem roubou ou quem foi roubado? Quem humilhou ou quem foi humilhado?…

A estratégia de sempre é desqualificar e apropriar-se: assim tem sido com a nossa cultura, com as nossas festas, nosso samba, nosso carnaval, nossa fé, nossas características físicas, nossa melanina, nosso sagrado e nosso profano.

Muitos negros se autodeclaram brancos, querem distância dos seus iguais para se sentirem alguém que nunca vão ser e que – de verdade – não precisam ser. 

Afro-americano

Os africanos não foram trazidos e escravizados apenas no Brasil, eles foram espalhados pelas Américas. E, no decorrer do processo de afirmação das identidades étnicas nas Américas, foi constatada a necessidade de encontrar uma terminologia que pudesse “englobar” os negros como um todo. Surge assim o termo “afro-americano”, que nos incluiria.

Mas, de verdade, não nos reconhecemos nem como americanos. Se assim fosse, aumentaríamos na América – onde está também o Brasil – a consciência de pertença à “Mãe África”. Filhos originários de um mesmo continente, irmãos em uma mesma história em terras estranhas.

Nunca é demais repetir que a expressão “negro” foi criada pelo colonizador, bem como as diferentes modos de nos identificar para nos diferenciar a partir da quantidade de melanina na pele – mulata, cabrita…  -, “pérolas” da língua portuguesa que atendem a estratégias de “dividir para dominar”.

Vale a leitura do artigo “O que significa ser pardo no Brasil?”

A quem, até os dias atuais, não utilize o termo “negro” para “não ofender”. Houve um tempo em que, para “minimizar” o próprio racismo, pessoas se referiam aos pretos que gostavam (?!) como “pretos de alma branca”, “pardos” ou “não tão escuros assim”!

A atriz Camila Pitanga autodeclara-se negra mas, em uma pesquisa do Datafolha, apenas 27% dos entrevistados a classificam assim – 36% disseram que ela é parda. O jogador  Ronaldo Fenômeno, por sua vez, disse em uma entrevista que se considera branco, mas, segundo a mesma pesquisa, 64% dos brasileiros o consideram preto ou pardo, e somente 23% como branco.  A atriz Taís Araújo, autodeclarada negra, é vista como tal por apenas 54%. E por aí vai…

Eugenia

O Estado brasileiro tem em sua história diversas atitudes racistas. No final do século XIX, por exemplo, proibiu a entrada de imigrantes africanos e asiáticos no país – depois de mais de três séculos de escravização africana -, ao mesmo tempo em que promovia a entrada de imigrantes europeus. Tudo para – literalmente – clarear o Brasil! 

Leia os artigos  As Leis e o Racismo e Racismo científico

Assumir-se negro sempre foi desafiador, por todo o conteúdo ideológico anti-negro que historicamente se desenvolveu no país, onde ainda hoje impera a ideologia do branqueamento e um padrão branco-europeu estético e cultural.

No passado, era raro a pessoa fruto de um relacionamento interracial optar para o lado negro de sua dupla natureza uma vez que, diante da massa de negros afundados na miséria, com eles não queria se confundir.

Nos últimos anos, contudo, cada vez mais brasileiros reconhecem sua origem ancestral africana – resultado de trabalho árduo do movimento negro em diáspora. Mas é fato, também, que muitos o fazem por conveniência, afro conveniência, de olho em conquistas voltadas a diminuir a falta de equidade presente em nossa sociedade, como a lei de cotas, entre outras.

Resgatar, tomar de volta, viver nesta terra que enriqueceu e enriquece às custas do nosso trabalho e de todos os que vieram antes tem de ser o nosso propósito. Igualdade e equidade, mais que palavras, são modos de estar na vida.

• • • • •

Fontes: Significados, Wikipédia, Letras – UFMG, Brasil – Nações Unidas, Revista África e Africanidades; De preto à afrodescendente: implicações terminológicas -, artigo de José Geraldo da Rocha (Unigranrio), Fontes – UNFPA – agência das Nações Unidas para a saúde sexual e reprodutiva, Geledés

Escrito em 10 de outubro de 2025

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *