Racismo científico
– Tania Regina Pinto
Racismo Científico (Imagem: Reprodução)
Usar, abusar e exterminar! Esta a história idealizada a partir da escravização negra. Desqualificar a existência, apagar a história apropriando-se dela, da mesma forma que se fez quando do primeiro rapto e tráfico do povo africano para trabalhar duro nas Américas invadidas pelos europeus.
Há quem acredite em sentimento de amor e ódio. É impossível não reverenciar a excelência do povo negro. Excelência que, dia a dia, se escancara diante da branquitude, apesar de tudo!
Pelé, Lewis Hamilton, Beyoncé, Gilberto Gil, Aleijadinho, Machado de Assis, Carolina de Jesus, Michael Jackson, Milton Santos, Marta, Lélia Gonzalez, Imhotep, Oprah, Viola Davis, Ben Carson, Mary Beatrice, Tebas, Zumbi, Lutuli, Wole Soyinka…
Nossa inteligência é 11.0! Não existiria nem a história do Brasil, de progresso econômico, dos barões do café, se não fosse o saber e a força do trabalho dos que foram arrancados do continente africano.
Mas quando a branquitude percebeu que não havia chibata capaz de matar a sede de viver livre do povo preto, que já constituía a maioria da população brasileira, decidiu-se pelo seu aniquilamento.
De imediato, Monteiro Lobato, que viveu entre 1882 e 1948, expressão da burguesia conservadora e reacionária de seu tempo, propôs 15 dias de terremotos como solução ideal para o extermínio do povo preto.
Mas aí, quem iria trabalhar? Cuidar das casas, dos bebês, das plantações, dos comércios, dos transportes? Quem iria garantir a riqueza e o privilégio branco que se sustenta nos dias atuais, ainda?
Superioridade negra
Nas últimas décadas do século XIX, antes da abolição da escravatura, políticos e intelectuais iniciaram um intenso debate sobre a modernização do Brasil e a construção de sua identidade nacional.
Incomodava a questão racial. Defendia-se a superioridade branca à luz de teorias então consideradas “científicas”, diante de uma população de maioria não-branca, “racialmente inferior”, ainda maior que nos dias atuais.
A mistura de raças também preocupava como fator responsável pela degeneração do ser humano, física e mentalmente. Quer dizer, na cabeça deles, quanto mais misturado, menos gente!
Branquear pra disfarçar?!
Assim ganha força a “tese de branqueamento” a partir de um processo de eugenia, a “ciência dos bem-nascidos”, capaz de melhorar as “qualidades raciais” das futuras gerações.
Assinada a lei áurea, o governo cria o crime de vadiagem no primeiro Código Penal Brasileiro, em 1890 e, em 1941, carrega mais nas tintas com o Decreto-Lei 3.688, instituindo a Lei das Contravenções Penais que condena à prisão não só pessoas sem carteira de trabalho, mas também em situação de mendicância – o que só deixou de ser crime em 2009!
Leia o artigo As Leis e o Racismo.
Quem era a população em situação de rua e desempregada? A mesma população negra escravizada que, “liberta pela lei”, também pela lei não teve direitos garantidos a todo cidadão brasileiro ou chegado do estrangeiro!
Nem mesmo um programa de democracia rural (precursor da reforma agrária), que garantisse um pedaço de terra para plantar e colher, conforme proposta do engenheiro abolicionista André Rebouças.
E como se não bastasse, durante a administração de Getúlio Vargas, com o Decreto-Lei nº 7967, de 1945, regulamentou-se a entrada de imigrantes de acordo com a “necessidade de preservar e desenvolver a composição étnica da população – as características mais desejáveis de sua antecedência europeia”.
Pseudociência
Como parte da política de branqueamento da população, também se apostava na miscigenação – compreenda-se: relações sexuais do homem branco com a mulher negra – e abandono da população negra do país egressa da escravidão.
Os entusiastas do processo acreditavam que em um século os negros já teriam desaparecido do Brasil e os brancos seriam a maioria da população!!!
Leia mais sobre racismo e arte no artigo Ser Negra nas Artes Plásticas, uma imersão qualificada na diferença entre nós-objeto-de-arte e nós produzindo arte sobre nós mesmos.
Ato de amor ou de ódio?!
Uma comissão brasileira, liderada pelo então diretor do Museu Nacional, o médico João Baptista de Lacerda, fez a defesa da proposta de branqueamento do país no I Congresso Internacional das Raças, em Londres, Inglaterra, no ano de 1911.
Para ilustrar o projeto, o médico apresentou a tela A Redenção de Cam, do espanhol Modesto Broco, com uma anciã negra agradecendo aos céus, a filha preta de pele clara, um bebê “quase branco” e o marido branco feliz com a família.
Tá na Bíblia
Destaque-se o sentido bíblico do título da tela: Cam é mencionado no livro de Gênesis como o primogênito de Noé, o da arca. Ele e seus irmãos Sem e Jafé foram salvos do dilúvio.
Era uma negrada! A Bíblia, inclusive, refere-se ao Egito, na África, como “as tendas de Cam”.
O artigo Origem Africana da Filosofia, de Molefi Kete Asante, aprofunda o debate sobre a cor da pele dos egípcios, “tornados branco” pelos colonizadores.
Cessado o dilúvio, Noé, que também era vinicultor, plantou uvas, fez vinho de sua colheita, embriagou-se e dormiu pelado. Até aí, nenhum problema, se Cam não tivesse visto a nudez paterna (considerado um ato vergonhoso na época) e ficado quieto. Mas ele contou para os irmãos e fez piada.
Ao recobrar a consciência, Noé, indignado, amaldiçoou o filho, dizendo que ele seria tratado como o “servo dos servos dos irmãos”.
O que quer nos ensinar o quadro? Que o aniquilamento, o desaparecimento do ser negro, é um ato de amor, de redenção, salvação, atitude de perdão!!! É isso que mostra a tela, no agradecimento a Deus da anciã!
Registre-se que, no passado, o conceito de raça era carregado de um sentido biológico. Mas os avanços de áreas como a genética, ainda no século XX, já derrubaram a tese de que existem diferenças biológicas entre as populações humanas.
Afirmar que o negro tinha e/ou tem tendência à delinquência por uma questão genética não tem nada a ver com ciência. É racismo. E a serviço deste mesmo racismo, na atualidade, a ideia do colorismo.
Leia O DNA do Colorismo que propõe um olhar ampliado para o tom da nossa pele.
Existir negro
Aos negros foi imposto o sincretismo em todas as suas facetas. Todo o poder constituído sempre esteve em mãos não negras nas Américas e na Europa. Toda a informação oficial sempre esteve em mãos não negras. E não por acaso, mas atendendo à manutenção da desinformação, da deseducação e da crença de que tudo vai bem.
A verdadeira história do povo preto, que não tem como marco zero a escravização, é omitida dos livros didáticos! A lei não é cumprida…
Nem nos espaços públicos nem nos espaços privados por desconforto, ignorância, entre outras questões mais profundas, sobre o desafio de ser negro em uma sociedade racista.
Daí a importância de se tocar no assunto, de se escrever a respeito, do convite ao diálogo, à reflexão, de se perguntar a quem interessa negros brigando entre si, se dividindo pela cor da pele, se digladiando para que o poder permaneça nas mãos da branquitude, para que o privilégio branco se perpetue?
Somos povo!
Elemento determinante do mundo em que vivemos, a raça é uma construção social tomada emprestada da botânica. É a partir daí que “nasce” o negro, o branco, o amarelo, o vermelho, dividindo seres humanos segundo sua origem geográfica e características físicas.
É verdade que escravizados são um dado da história da humanidade – brancos também viveram esta condição -, mas os requintes de crueldade, a desumanização se “aprimoraram” a partir do rapto e do tráfico dos africanos pelos europeus, que nos batizaram para viver sob correntes e chibatas.
A raça surge para justificar a colonização, a dominação, a invasão de continentes, a apropriação e escravização do povo negro, de sua história, conquistas, saber, vida.
Não podemos seguir compactuando com essa narrativa!
Acesse a edição ANTIRRACISMO, com 32 artigos sobre a luta.
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Escrito em 26 de fevereiro de 2023
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