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Guerreiras pretas: sem fardas nem armas!

- Lizandra Andrade

Negras de Ganho e Adelina, a charuteira (Imagem: Reprodução)

Livres ou escravizadas, as mulheres são a base na construção de nossa luta permanente por liberdade, igualdade, equidade, vida plena.

A Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 faz parte da chamada legislação “para inglês ver”. Apesar de declarar textualmente “extinta a escravidão no Brasil”, serviu para a criação de estratégias de permanente genocídio do povo negro. Na contramão da política colonial branca, entretanto, a sempre incansável mulher negra abalando as estruturas políticas e policiais, de ontem e de hoje.

A chamada “abolição” não acontece com dia e hora marcada. Ela é um processo vivenciado no cotidiano negro nos quase quatro séculos de escravização. A ideia do negro, da negra, dócil, cordato, cordata, não conta toda a nossa verdade.

Negros e negras não devem nada a ninguém. Todas as nossas conquistas têm o nosso sangue, o nosso DNA, são resultado de luta, de confronto, de resistência. Nada concedido, tudo tomado e, muitas vezes, à força. 

Eles sabem o que fizeram e sabem do que somos capazes, em nome da liberdade, sonhada por toda a humanidade. No livro Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, a escritora Celia Maria Marinho de Azevedo analisa um debate que acontecia no Brasil desde, pelo menos, meados do século XVIII. 

Não por acaso, a questão básica em discussão carregava um grande viés racista:

 O que fazer com o negro?

Ninguém perguntava: “O que fazer com o branco?” 

Neste tempo, mesmo na condição de escravizados, já éramos a maioria da população, os trabalhadores da terra, as pessoas que produziam, que cuidavam das crianças, que amamentavam, e isso fazia tremer os chamados “senhores de escravos” e as chamadas “sinhás” e “sinhazinhas”.

A estratégia era ignorar e fazer sangrar a capacidade do negro para a autodeterminação. Mas seguimos vivos, seguimos maioria, seguimos causando medo, o que explica a truculência, a polícia criada no pós escravidão para conter nossa existência liberta.

São rebeliões, fugas em massa, formação de quilombos para resistir à escravização… E, em todas as frentes, o ativismo feminino com muitas das protagonistas anônimas, como as baianas do acarajé, que garantiam a compra de cartas de alforria para os escravizados com a venda da iguaria; as jornaleiras que, ao vender jornais, também convocavam, à boca pequena, para reuniões de abolicionistas, as mulheres com suas saias rodadas nos jogos de capoeira.

Baiana do Acarajé (Imagem: Reprodução)
Baiana do Acarajé (Imagem: Reprodução)

Os documentos da época não falam do ativismo feminino no processo abolicionista, mas, na imprensa, as mulheres negras aparecem em grande quantidade nos registros policiais. Elas faziam a mobilização

E é importante esta visibilidade ancestral das mulheres negras. Confirma o quanto honramos as que vieram antes, fazendo – enquanto for necessário -, por nós e por elas.

Contar suas histórias, suas estratégias de luta, do movimento abolicionista na senzala e na cozinha da casa grande, é fortalecer nossa disposição de luta e nossos saberes. inclusive culinários, não compreendidos em sua grandeza em um país que naturaliza/celebra a escravidão!!!

Na outra América também, mulheres negras já se organizavam para comprar alforria no início do século XIX. Lá, como aqui, havia muito porque lutar. Na Louisiana, elas eram colocadas em celas com prisioneiros do sexo masculino, engravidavam e seus filhos – nascidos de pais afro-americanos cumprindo sentenças de prisão perpétua – eram considerados propriedade do Estado e leiloados nos degraus do tribunal. O dinheiro arrematado financiava escolas para crianças brancas.

Aqui, tivemos a Lei do Ventre Livre no corpo da mulher escrava!

Luta da realeza

Duas princesas escravizadas, Zacimba e Aqualtune, lutaram pela liberdade de seu povo e criaram repúblicas quilombolas no Brasil.

A princesa angolana Zacimba, vendida no estado do Espírito Santo, sofreu extrema violência exatamente por ser da realeza. Resistiu bravamente. Vingou-se. Libertou seu povo, liderando-o até um quilombo onde se tornou rainha.

Assista o vídeo Zacimba Gaba, a princesa guerreira.

Aqualtune foi vendida a senhores de escravos, depois da decapitação de seu pai ainda em África, depois da luta pelo controle do território de Dembos, que separava Angola e Congo. Capturada por forças portuguesas, veio para o Brasil.

Antes de ser capturada pelas forças angolanas e vendida aos portugueses, Aqualtune liderou dez mil pessoas durante o confronto do seu reino com as forças angolanas. 

No Brasil, transformada em “escrava reprodutora” em uma fazenda em Porto Calvo, no estado de Pernambuco, foi sistematicamente estuprada para parir novos cativos.

Ao ouvir falar da resistência negra no Brasil, constituída em quilombos, Aqualtune juntou-se a outros escravizados na luta por liberdade. 

A partir das tradições de sua cultura, Aqualtune fez nascer o maior quilombo do país, com mais de 100 mil negros que reconquistaram sua liberdade na marra. Ela é avó de Zumbi dos Palmares, mãe de Ganga Zumba. 

Em Palmares, também, Dandara, mulher de Zumbi, fundamental na luta..

E tem a história de Anastácia – narrada em livros umbandistas -, filha de uma princesa bantu. Por se negar a ser amante de seu senhor (dizem alguns) ou para que não falasse contra a escravidão (contam outros), ela foi sentenciada a espancamentos constantes, bem como a usar mordaça de flandres e uma gargantilha de ferro por toda a vida.

Adelina, a charuteira ‘espiã’

Da casa grande, onde escravizadas “desfrutavam” de maior mobilidade, com acesso não apenas a cozinha, mas aos outros cômodos da fazenda, inclusive os quartos, a história de Adelina, espiã e “ criado-mudo”.

Não foram poucas as noites em que passou segurando um copo d’água ou as roupas, para os seus senhores e senhoras, em absoluto silêncio!

É daí que surge a expressão “criado-mudo”. Mudo, mas não surdo! Ou melhor, muda, mas não surda. Sim, porque Adelina vivia essa rotina desumana, mas escutava todas as conversas da casa grande..

Filha bastarda de João da Luz e da escravizada Josepha Tereza da Silva, ela era serviçal do próprio pai e vivia em São Luís, capital do Maranhão.

Adelina, charuteira espiã (Imagem: Reprodução)
Adelina, charuteira espiã (Imagem: Reprodução)

Quando nasceu, em 1859, sua mãe conseguiu, verbalmente, a promessa de que sua filha receberia educação igual à dos irmãos legítimos (o que era incomum) e a carta de alforria quando completasse 17 anos. 

João da Luz, rico comerciante, cheio de propriedades, vivia dos lucros de compra e venda de charutos e fumo até que perdeu tudo e passou a fabricar os próprios produtos. Adelina ficou encarregada pelas vendas. Assim, “ganhou as ruas” – mas não a liberdade – e conheceu o movimento abolicionista.

Clube dos Mortos

Duas vezes por dia, Adelina se arrumava, organizava os charutos e os fumos e caminhava até a cidade. Ia de bar em bar vender os produtos e sempre conversava com as pessoas na rua.

No Largo do Carmo (atual Praça João Lisboa, na cidade de São Luís), abordada por estudantes do Colégio Liceu e aproveitava para ouvir os comícios pelo do fim da escravidão.

Não demora, Adelina passa a fazer parte do Clube dos Mortos – associação que escondia escravizados, comprava cartas de alforria e auxiliava em fugas. Isso porque conhecia a cidade na palma da mão e observava a ação da polícia. 

E não só. Adelina fazia o intercâmbio de informações e estratégias entre os abolicionistas e a associação.

Luta sem fim

Com a abolição não houve nenhum tipo de ganho para o povo negro. Apenas a força da lei e a truculência policial. Não se podia pensar em dispersão. A festa durou o 13 de maio de 1888. E as mulheres seguiram fazendo o trabalho de bastidor, de formiguinha, nas entidades, como a Frente Negra Brasileira, e a Associação das Domésticas, de Laudelina de Campos Mello.

A luta contra o analfabetismo da jornalista e professora ativista e deputada estadual Antonieta de Barros, em Florianópolis, Santa Catarina; o feminismo negro de Lélia Gonzalez, autora do livro Lugar de Negro, e de Sueli Carneiro, duas filósofas pioneiras, referências do ativismo feminino. 

Já se viveu mais de um século desde o fim da escravidão nos moldes concebidos por Portugal, sob as bênçãos da Igreja Católica, contra mais de cinco séculos desde o inicio do sequestro e tráfico do povo negro em África, e a luta parece sem fim, apesar das conquistas, que não são poucas.

A favor do ativismo feminino negro, o fato de, hoje, permanecermos muitas, com nome e sobrenome, lugar de fala, direito de votar e ser votada, nos quatro cantos do país, movimentando estruturas, construindo, tijolo por tijolo, a sociedade na qual queremos viver.

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Fontes: Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites–século XIX. Por Celia Maria Marinho de Azevedo. Prisão Americana: Viagem Secreta de um Repórter ao Negócio de Punição por Shane Bauer / Via:Goitsemedime Ketu Mussole: Xapuri Info

Escrito em outubro 2022

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3 comentários em “Guerreiras pretas: sem fardas nem armas!”

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