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Tia Ciata, a baiana matriarca do samba carioca

O que este artigo responde:
Quem foi Tia Ciata? Onde nasceu Tia Ciata? Qual a importância de Tia Ciata para o samba? Qual o nome de Tia Ciata? Qual é a história da Tia Ciata? O que acontecia na casa da Tia Ciata? 

Tia Ciata (Imagem: Reprodução)
Tia Ciata (Imagem: Reprodução)

Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata ou Tia Aciata, nascida em Santo Amaro da Purificação, cozinheira e mãe de santo, considerada por muitos uma das figuras mais influentes para o surgimento do samba carioca. Iniciada no candomblé em Salvador por Bangboshê Obitikô, era filha de Oxum.

No Rio de Janeiro era Iyakekerê na casa de João Alabá. Também ficou marcada como uma das principais animadoras da cultura negra nas nascentes favelas cariocas.|

Em sua casa na Praça Onze, onde os sambistas se reuniam, foi criado o primeiro samba gravado em disco – Pelo Telefone -, uma composição de Donga e Mauro de Almeida, na voz do cantor Bahiano, também nascido em Santo Amaro da Purificação.

Tia Ciata tornou-se um símbolo da resistência negra no Brasil pós-abolição e uma das principais incentivadoras do samba, depois de abrir as portas de sua casa para reuniões de sambistas pioneiros, quando a prática do samba era proibida por lei.

Aos 22 anos, levou o samba de roda para o Rio de Janeiro. Foi a mais famosa das tias baianas.

O quadro acima reproduz o que está escrito no painel com a foto de Tia Ciata na Sociedade Protetora dos Desvalidos, “ SPD 187”, que a indica como uma das 

“Personalidades Negras do Século XIX”. Tia Ciata viveu entre 1854 e 1924. Faz 100 anos da sua morte! Era dia 10 de abril. 

Mas sua vida começa no primeiro mês do ano, num dia 13. E, com apenas 16 anos de idade, ela já participa da fundação da Irmandade da Boa Morte, associação afro-católica que cultuava os orixás e a ancestralidade africana, em Cachoeira, município do Recôncavo Baiano.

Texto "Irmandado da Boa Morte" escrito ao redor de um desenho esculpido em madeira.
Irmandade da Boa Morte (Imagem: André F | Salvador, Cachoeira, 2008)

Em 1876, aos 22 anos, com uma filha nos braços, o samba de roda, os conhecimentos de ervas e o culto aos orixás na bagagem, se muda para a cidade do Rio de Janeiro, no êxodo que ficou conhecido como diáspora baiana – a migração de baianos para outras partes do Brasil e do mundo, fugindo da perseguição policial.

Algum tempo depois de se instalar em terras cariocas, a baiana se casa com o funcionário público João Baptista da Silva. Com ele, tem 14 filhos. E trabalha como quituteira para sustentá-los junto com o marido – nascida escravizada, ela acompanha sua mãe na cozinha da casa grande e aprende a arte culinária.

Põe um turbante na cabeça, saia branca volumosa, bem engomada, guias ou fios-de-contas no pescoço e pulseiras nos braços, sempre na cor do orixá que iria homenagear. E, assim, se torna uma das precursoras do comércio de “tias baianas quituteiras” da cidade, expressando, por meio da comida, suas convicções religiosas e a fé no candomblé, proibido e sempre perseguido no país.

A baiana do acarajé é a primeira empreendedora do Brasil – na Bahia, durante a escravização, com a venda da comida de Xangô e Iansã, mantinha os terreiros e comprava cartas de alforria. No Rio de Janeiro, antes da assinatura da lei áurea, Tia Ciata liderou um movimento econômico informal nos mesmos moldes e garantiu a manutenção da cultura popular e os ritos de tradição africana.

Samba na rua

Seu ponto de venda era no Largo da Carioca que, a partir da sua chegada, começa a ser chamado de “Tabuleiro da Baiana”, com a venda de acarajé, bolos, manjares e cocadas. Lá, também, ela organiza sambas de roda, uma tradição baiana.

Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, onde Tia Ciata trabalhou (Imagem: Domínio Público)
Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, onde Tia Ciata servia acarajés e também organizava rodas de samba (Imagem: Domínio Público)

Partideira reconhecida, canta com autoridade respondendo aos refrões das festas da Praça Onze, que se arrastam por dias. E ainda cuida para que a comida esteja sempre quente e saborosa e o samba nunca pare. Fornece a água e a pinga aos sambistas de roda e às outras tias baianas.

Quando a polícia passa a reprimir os sambas de rua, sob a acusação de vadiagem, Tia Ciata abre as portas da sua casa, sendo reconhecida como a grande dama das comunidades negras no Brasil pós-abolição e uma das principais incentivadoras da nossa música. 

Morada do samba

Segundo o compositor João da Baiana, muitas vezes, o samba acontecia em três ambientes diferentes da casa: “Os velhos ficavam na sala da frente cantando partido alto… Os jovens, nos quartos cantando samba corrido, e, no terreiro, ficava o pessoal que gostava da batucada… No meio da bagunça logo aparecia Tia Ciata dançando o ‘miudinho’” – uma forma de sambar de pés juntos que exige destreza e elegância. 

Mas a história de samba diferente em cada cômodo da casa, traz uma curiosidade a mais, como descreve Gracy Mary Moreira, orgulhosa bisneta de Tia Ciata: 

“A polícia batia na porta e o meu bisavô ‘mudava’ o gênero musical na hora. Dizia que ali não estavam tocando samba, estavam tocando choro, que não era proibido. Meu pai contava direto essa história que ouvia da mãe dele”. 

Gracy é filha do músico e compositor Bucy Moreira, neto de Tia Ciata, e, também, a presidente da Casa da Tia Ciata, um espaço de cultura na Rua Camerino, 5, no centro do Rio, que permite ao visitante uma imersão na memória desta matriarca do samba, toda ela transmitida por meio da oralidade.

Mas a polícia, incansável na perseguição, várias vezes, manda fechar a casa da sambista… Até o dia que sua vida cruza com a do presidente da República Wenceslau Braz! 

Ferida “abençoada”

O chefe do executivo tinh uma ferida na perna que os médicos não conseguiam curar. Um investigador, que já havia sido curado por Tia Ciata, pediu um remédio para sarar a enfermidade do político. Em uma sessão em seu terreiro, Tia Ciata incorpora um orixá que afirma aos presentes haver cura para a tal ferida e recomenda a Wenceslau Braz que faça uma pasta com ervas e a coloque no machucado por três dias seguidos.

Ciata de Oxum vai ao Palácio do Catete – na época, sede do governo na então capital federal Rio de Janeiro -, prepara a infusão de ervas, banha as pernas do presidente e ele fica curado. 

Agradecido, Wenceslau Braz se propõe a realizar qualquer pedido de Tia Ciata e ela não se faz de rogada. Faz, logo, dois pedidos: 

  1. dar a posição de chefe de polícia ao seu marido
  2. intervir na repressão policial durante a batida de tambor na sua casa

Existia um código criminal que mandava prender e tomar os utensílios religiosos, a somar-se à proibição do samba e à perseguição pela polícia… 

Deu certo! Criou-se uma rede de proteção para o culto aos orixás, para o samba, para as comidas, enfim para a cultura negra

João Baptista, seu marido foi transferido da Imprensa Nacional para o gabinete da Chefia de Polícia. E, em sua casa, estava mais que autorizado o som dos atabaques – para o “sagrado” e para o “profano”, bem como os encontros de sambistas. E com direito a dois soldados para fazer a segurança! Isso, durante os dois últimos anos do mandato do presidente Wenceslau Braz, entre 1914 e 1918.

Essa história torna evidente que a base de tudo sempre foi a espiritualidade. Espiritualidade que sustenta a resistência e a re-existência do povo negro desde sempre, tenhamos consciência disso ou não!

Ora iê iê ô”

No Candomblé, Hilária é iniciada na casa do babalawo africano Bámgbósé Òbítíkò, da nação Ketu, e se torna uma das mais importantes ialorixás (mãe de santo) de sua época, sendo confirmada como Ciata de Oxum. Mas, devido à discriminação e ao estigma associados às religiões africanas no Brasil, mantem sua fé em segredo.

Antes de ter sua própria casa de Candomblé, ela se torna mãe-pequena de João Alabá, de Omulu, função que dá suporte ao líder do terreiro. A casa de João Alabá era considerada uma “filial carioca” de uma dissidência do Ilê Iyá Nassô em Salvador, o Ilê Axé Opô Afonjá.

Outras facetas

Tia Ciata festeja seus orixás em festas famosas, como a dos Ibejis, Cosme e Damião e de sua Oxum, Nossa Senhora da Conceição. Mas, antes do culto aos orixás, acontecia uma missa cristã. Depois, músicos e capoeiras assumiam o protagonismo.

Mas sua bisneta percebe sua força representada em outros espaços, além do samba e do candomblé: 

“A gente pode dizer que ela atuou também como assistente social. Independentemente das festas, onde tinha muita comida, ela oferecia comida para as pessoas que batiam a sua porta, ajudava a localizar as famílias de negros que chegavam no porto do Rio…”

E, ainda, confeccionava e alugava roupas de baiana feitas com requinte, para teatros e desfiles carnavalescos, para mulheres e homens, gente graúda que gostava de se travestir nos festejos de Momo. Sem falar o lado da economia informal.

Pequena África

Tia Ciata morou em diversos endereços na região central do Rio de Janeiro, como a Pedra do Sal, no Beco João Inácio; nas ruas da Alfândega, General Câmara (conhecida como “rua do sabão”) e dos Cajueiros. Mas foi no bairro Cidade Nova, na rua Visconde de Itaúna, na Praça Onze, que o encontro da cultura com a religião ficou mais forte e abriu espaço para o que se tornou o “berço do samba”..

Fotografia em preto e branco com um angulo de cima da praça 11 de junho, que fica no Rio de Janeiro
Praça 11 de junho (Foto: Augusto Malta/ Acervo FBN)

A Praça Onze era um reduto de pessoas de origem africana alforriadas e imigrantes, ponto de encontro tradicional para as personalidades do samba carioca, instalada à margem do Rio de Janeiro branco e europeizado, apelidada por Heitor do Prazeres de “Pequena África”:

“Ele vendo aquelas pessoas – islâmicos, judeus, ciganos descendentes de África, começa a dizer que a casa de Tia Ciata é a capital de uma África pequena”, reflete, pelas palavras que ouviu do pai, Gracy Mary Moreira.

O casarão histórico não existe mais – a área foi demolida para a construção da avenida Presidente Vargas. Tinha muitos quartos, duas salas, um longo corredor, um grande quintal, com um abacateiro… (TIRAMOS FOTO DA MAQUETE DA CASA NA EXPO PEQUENA ÁFRICA)

Por vezes, ela promovia saraus com chorões e bailes amaxixados no salão da frente e um samba no fundo do quintal, sempre com uma cerimônia de candomblé encerrando as festividades.

Nos mais de 20 anos em que morou na Cidade Nova – entre 1899 e 1924, frequentaram sua casa mães de santo, funcionários públicos, valentões, jornalistas, estivadores, atores, astros do rádio e importantes nomes da música popular como Hilário Jovino Ferreira, Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô, Caninha, Didi da Gracinda, Marinho que Toca (pai do compositor Getúlio Marinho), João da Mata, João Câncio, Getúlio da Praia, Mirandella, Mestre Germano (genro de Ciata), China (irmão de Pixinguinha), Catulo da Paixão Cearense…. Todos, desafiando o racismo entranhado no país.

Todo ano, durante o Carnaval, Tia Ciata armava uma barraca na Praça Onze, reunindo desde trabalhadores até a fina flor da malandragem, onde eram lançadas as marchinhas, que ficariam famosas na cidade.

Existem controvérsias sobre ter sido o primeiro mesmo e até sobre a autoria, mas, oficialmente – de acordo com dados da Biblioteca Nacional -, foi em sua casa que o primeiro samba gravado foi criado, Pelo Telefone – canção atribuída a Donga em parceria com Mauro de Almeida, lançada entre 1916 e 1917.

Leia o artigo “Pelo Telefone”, sem fio, do primeiro samba gravado.

Ancestral

Tia Ciata vai para a ancestralidade em 10 de abril de 1924 na cidade do Rio de Janeiro, aos 70 anos de idade. Sua história, entretanto, segue pulsando na Praça Onze onde, desde 1996, existe um monumento em homenagem à sua vida.

Samba na Praça Onze (Imagem: Reprodução)
Samba na Praça Onze (Imagem: Reprodução)

No Rio de Janeiro, também, sua história aparece em enredos de escolas de samba, livros, documentários e em evento artístico, que envolve diversas linguagens para celebrar as primeiras rodas de samba, o culto aos orixás, os doces e tudo o mais que acontecia no casarão e ao seu redor.

E ela ainda empresta seu nome a um cortejo no Dia da Consciência Negra e até a uma parada de estação do VLT Carioca (Veículo Leve sobre Trilhos), a Parada Cidade do Samba Tia Ciata, da Linha 1. 

Quer saber mais?
Acesse os artigos: Samba, da potência ao ato e Mãe Menininha do Gantois, a ialorixá das ialorixás, com a história de uma outra baiana arretada. 

Fontes Casa da Tia Ciata, Ebiografia, Agência Brasil, Wikipédia, Exposição Pequenas Áfricas – O samba que o rio inventou – Instituto Moreira Salles, Pensar Piauí

Escrito em maio de 2024

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