2024 marca os 50 anos do primeiro bloco afro do Brasil. 50 anos de história, de luta para recuperar a potência africana aos olhos dos brasileiros, incorporando os saberes do Berço da Humanidade em práticas educativas, políticas, de reforço da auto estima e da religiosidade negra.
O que este artigo responde: O que significa Ilê Aiyê? Qual é o primeiro bloco afro do Brasil? Onde nasce o Ilê Ayê? Quem fundou o primeiro bloco afro do Brasil? Ilê Aiyê tem a ver com orixás? Qual a importância do Ilê Ayê para o povo negro? Qual a relação do Ilê Ayê com os terreiros de candomblé? Como surge a ideia de criar o Ilê Ayê²? O que é a Noite da Beleza Negra? Qual a influência do Ilê Ayê na vida do povo baiano? O que caracteriza o ritmo samba afro?

A África é o Berço da Humanidade.
O Ilê Aiyê – em iorubá, Mundo Negro, Casa de Negro, Casa da Terra – resgata esta verdade.
O Ilê Aiyê é o primeiro bloco afro do Brasil e se consolida em território nacional como expressão cultural do carnaval de Salvador, embora sua existência represente muito mais que quatro, cinco dias de folia.
Ilê Aiyê é Política Negra!
Inspirado pelas lutas por direitos civis nos Estados Unidos, pela ação dos Panteras Negras, pelo líder Malcom X e pelas guerras de libertação contra o colonialismo na África, o Ilê é uma resposta histórica à segregação de negros do carnaval baiano.
O começo
Entre a sua fundação em 1º novembro de 1974 e o desfile no carnaval de 1975, houve resistência à ideia de Antonio Carlos dos Santos, o “Vovô”, Apolônio de Jesus e outros moradores do entorno da ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade, de formar um bloco de carnaval só de negros e, ainda por cima, chamado “Poder Negro”
A Polícia Federal da Bahia disse “não”!
A justificativa?
Conotações negativas e “alienígenas”?!?!?!
Mas os orixás sabiam que isso aconteceria e, não por acaso, Mãe Hilda o batizou como Ilê Ayê, indicando que o bloco era uma “extensão” do terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu!
E foram cem os primeiros foliões negros – incluindo 15 instrumentistas -, que com cartazes, adereços e cabelos trançados, black power e rastafri saíram pelas ruas do bairro, sob a vigilância da Polícia Federal, cantando:
“Que Bloco é esse? Ilê Ayê
Eu quero saber… Ilê Ayê
É o mundo negro, que viemos cantar para você…”
Mas a música de Paulinho Camafeu, Que Bloco É Esse, não parava por aí… e, na batida dos tambores, os foliões caprichavam na interpretação dos versos:
“Branco, se você soubesse, o valor que preto tem
Tu tomava banho de piche, ficava preto também…
Eu não lhe ensino minha malandragem
Nem tampouco a minha filosofia, não
Quem dá luz a cego é bengala branca e santa luzia…”
E para arrematar, o refrão:
“Somos criolo doido. Somos bem legal.
Temos cabelo duro. Somos black power.
Criolo doido. Bem legal.
Cabelo duro. Black power…”
Não faltaram vaias durante o desfile e críticas da imprensa, como a do jornal A Tarde, diário baiano em circulação desde 1912, que, em 12 de fevereiro de 1975, estampou a manchete:
“Bloco Racista, Nota Destoante”
Antes, o mesmo jornal já havia acusado o movimento do bairro da Liberdade de “inconcebíveis intenções subversivas” ao vincular a situação do negro brasileiro à do negro americano.
Vale a leitura do artigo Brasil e Estados Unidos, o racismo nosso de cada dia e suas diferenças na coluna Sem Mordaça.
Com o tempo, a desconfiança cedeu espaço ao ganho econômico. Compreenda-se: “injeção” financeira no turismo baiano, dinheiro para os cofres públicos…
Na folia de 1977, o bloco é um mar de negritude com mil foliões. E o bairro da Liberdade, antes de “suberversivos”, adquire status de espaço negro de resistência, um quilombo, um “Harlem baiano”.
No mesmo ano, Gilberto Gil grava a música tema do Ilê – Que Bloco É Esse.
“Sagrado” e “Profano”
Conhecido como “o mais belo dos belos”, o chamado carinhosamente de Ilê tem um ritual de padê antes de iniciar o seu carnaval. Neste dia, o bairro todo e a ladeira do Curuzu, em especial, se transformam em palco de um ato cultural-religioso.
O bloco se reúne – com a orquestra de percussionistas e o coral negro, em cortejo real – para pedir permissão aos donos da rua para sair e faz a oferenda de milho branco cozido e pipoca para Oxalá, o orixá da paz, e Obaluaiê, patrono da saúde.
Bênção dada, uma revoada de pombas brancas anuncia a saída da Deusa do Ébano, “divindade” eleita durante a Noite da Beleza Negra, a rainha do bloco, e o desfile começa.
Todo o trabalho religioso do Ilê – desde o início até 2009 – teve à frente Mãe Hilda Dias do Santos (1923-2009), sacerdotisa do terreiro Ilê Axé Jitolu – uma espécie de “madrinha” do bloco e mãe biológica de Antonio Carlos dos Santos, o Vovô, um dos seus idealizadores.
Ela quem lá no começo aprovou a ideia do filho do bloco negro, mas impôs a condição de participar do cortejo, a fim desestimular a repressão aos foliões.
E o seu terreiro, por aproximadamente 20 anos, serviu ao bloco como diretoria, secretaria, salão de costura e recepção de associados.
Deusa do Ébano
No terreiro de Mãe Hilda, também, se pensaram as estratégias para o resgate da nossa história ancestral, dos nossos valores.
A Noite da Beleza Negra, por exemplo, é uma resposta à não inserção da mulher negra nos concursos de Miss Universo que existem até hoje.
Leia o artigo sobre os clubes de preto Aristocrata e Renascença, que também surgiram como resposta à segregação negra.
Mas o Ilê não queria uma versão preta da mesma festa e, sim, subverter a proposta dos concursos de beleza tradicionais, tornando a Noite da Beleza Negra um exercício de autovalorização, de desconstrução dos discursos racistas e de celebração da raça negra, com a eleição da rainha do bloco.

Assim, para a escolha da Deusa do Ébano, até hoje, não se usam padrões como idade, estado civil ou medidas de cintura, mamas e bumbum. O que faz valer a vitória é a força da “deusa” em envolver a plateia e os jurados com sua simpatia e performance.
A consciência de pertencimento étnico-racial e suas reverberações no campo político são quesito fundamental para registro de candidatura.
A festa é um espetáculo com cortejo coreografado, figurinos, adereços e participação do Grupo de Dança do Ilê Aiyê, criado em 1985. As candidatas se apresentam com roupas do Ilê e fantasias individuais. Desde que foi idealizada, em 1979, esta é a festa mais importante para o Ilê antes do carnaval. Sem contar que, neste mesmo ano, seguindo seus passos, surgem mais blocos com inspiração africana em Salvador, como o Olodum, nossa primeira escola de tambores.
Divisor de águas
Na Bahia, a vida negra é uma antes do Ilê e outra depois do Ilê. E isso pode ser percebido visualmente: antes do bloco, pessoas negras não usavam vestes coloridas nem penteados com cabelo natural ou maquiagem que chamasse atenção – todos sabiam “o seu não lugar”, “a sua não-existência”.
Querendo africanizar o carnaval, o Ilê transformou a autoimagem e o cotidiano da população negra da Bahia e do Brasil. Traz para a vida real, em 1975, a palavra da moda do século XXI: empoderamento.
Cultura e histórias africanas cantadas em prosa-e-verso modificam nosso modo de nos ver no espelho.
Tranças, cabelo black power, rastafari, batas, búzios… passam a fazer parte de nossas estratégias de resistência e re-existência.

Um perfil azeviche – máscara africana do mineral que simboliza a pele negra – , com quatro búzios abertos formando uma cruz na testa, aliás, representam a identidade visual do Ilê, criada pelo artista Jota Cunha. Insígnias do candomblé – como o opaxorô de Oxalá e o tridente de Exu – também compõem os elementos gráficos do grupo.
No batuque do tambor
O Ilê transforma a estética baiana, o carnaval, a música preta brasileira e, ainda, cria um gênero musical denominado samba afro, que muda tudo!
A base é o ijexá, que deriva da religião dos orixás, calcada no batuque dos tambores e na potência das vozes. Só que tem mais: o samba afro promove a fusão da batida das escolas de samba com o samba duro e a cabila (ou cabula), tradicional ritmo executado nos terreiros de candomblé da nação Angola, misturados a ritmos do candomblé Queto, tais como opanijé, savalu e daró.
A riqueza plástica e sonora do Ilê retoma todas as formas expressadas na evolução dos movimentos de renascimento africano e afro-americano, as decodifica para o contexto específico da realidade baiana, sem perder de vista a relação de identificação entre todos “os negros que se querem negros” em qualquer parte do mundo, ressaltando sempre o caráter comum da origem ancestral, de um passado comum que nos irmana.
E o bloco invade as ruas de Salvador, canta a histórica revolta dos malês, o quase um século de resistência do Quilombo dos Palmares… Músicas que se transformam em nossos primeiros discos didáticos e na batida do tambor.Assim, ficamos sabendo que os nossos existiam 6.000 anos antes de Cristo em Kemet, Egito Antigo. Que Cleópatra e todos os faraós eram pretos e tiveram sua cor roubada, assim como Iemanjá! Acessamos informações sobre os primeiros inventores negros, sobre povos africanos nunca exaltados, como os de Ruanda e Azânia – o nome africano da África do Sul.
Para além do Carnaval
No lugar da folia, a contestação, o colocar o negro como sujeito da própria história, da história do Brasil, sua construção social, cultural, racial. O Ilê propõe a transformação dos símbolos, do discurso da branquitude a respeito dos afrodescendentes e de seu continente original.
Todo seu trabalho tem como princípio a discriminação positiva, o enaltecer as raízes africanas na cultura nacional, retirando da negritude a condição de marginalidade no existir.
E, para além do carnaval, ressignifica atributos negros, investe na autoestima da população 85% preta da capital da Bahia.

Expandido sua ação, em 1988, abre uma escola comunitária de Ensino Fundamental, que tem por eixo temático a equidade racial e de gênero.
Quatro anos depois, em 1992, inaugura uma escola de percussão, formando jovens instrumentistas para a Band’Ayê, atualmente com 100 músicos e que já teve Carlinhos Brown como mestre de percussão e está presente em obras de artistas como Martinho da Vila.
A partir de 1995, ainda, inicia a publicação anual dos Cadernos de Educação, com textos sobre a história negra.
Cinquentão!
Em 2024, o pioneiro Ilê celebra 50 anos, período durante o qual passou de cem para três mil associados, transformou o carnaval em manifestação política e tornou-se “patrimônio da cultura baiana”, reconhecido como local de resistência, militância e ações de combate ao racismo.
À exceção dos anos de pandemia do Coronavírus – em 2020, 2021 e 2022 – nunca deixou de sair no Carnaval, tampouco parou suas atividades.
Premiado diversas vezes como melhor bloco afro do carnaval baiano, teve seu primeiro registro musical em 1984, com o álbum Canto Negro.

Durante cinco anos, de 1974 a 1979, o Ilê foi o único bloco afro. Tempo suficiente para difundir a experiência e motivar a formação de vários outros grupos como o Olodum, em 1979, o Araketu, em 1980, e o Muzenza, em 1981, entre outros.
De todos, o Ilê é o que mais resiste e insiste na militância como foi concebida quando da sua criação. Só no Carnaval de 1996 criou o bloco alternativo Eu também sou Ilê, abrindo espaço para a participação de associados brancos.
Mãe Hilda
Em 6 de janeiro de 2023, no centenário de Mãe Hilda, o Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, lança selo comemorativo em homenagem à matriarca, criado pelo artista plástico baiano Wilton Bernardo.
“Celebrar o centenário de Mãe Hilda é fundamental pela importância que ela tem para a cultura baiana e para a religiosidade afro-brasileira. O trabalho dela contribuiu para a formação de crianças da comunidade do Curuzu e Liberdade. Sem ela o Ilê Aiyê não existiria. Ela deu a base para a criação do Ilê. Foi ela quem incentivou os filhos a criarem o primeiro bloco afro do Brasil”.
(Valéria Lima, neta da religiosa e diretora-executiva do Instituto)
…
Fontes: Ilê Ayê – site oficial, Brasil de Fato, G1, Wikipedia-Ilê-Ayê, Itau Cultural, jornal A Tarde, Wikipédia-Samba afro
Atualizado em 17/3/2024
Parabéns Tânia Regina pelo belo relato histórico dos avanços adquiridos das comunidades negras de Salvador por intermédio dos blocos afros, suas culturas, resistência, força e fé. Tive uma breve passagem quando morei em Salvador e pude presenciar e participar de algumas manifestações e dos movimentos dos blocos afros em crescente ascensão. Grato por compartilhar e fortalecer a história do nosso povo. Axé. Saudações Rastafari! Jahfla
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Que texto lindo, consistentes nas informações, bem ilustrado e cheio de sentimentos bons.
Acalmou a saudade que tenho da minha mãe Bahia e do querido colo ancestral, Salvador. Salvador meu amor .
Gracias, pela escrita, Axé
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Foi no Ilê que ganhei meu estojo, lapis, caneta, caderno, borracha, assim aprendi a escrever minha história!