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Qual é a nossa identidade?

Molefi Kete Asante, Anin Urasse e Cheikh Anta Diop (Imagem: Reprodução)

O que este artigo responde: Qual é a diferença entre povo e população? Qual é a diferença entre identidade cultural e identidade racial? Qual é o seu lugar no mundo? Qual é o meu lugar no mundo? Quanto a gente se ama? Como você se define? Eu sei quem eu sou?

Os brasileiros adoram falar de sua ascendência europeia. Mas nós – também nascidos neste território ao qual deram o nome de Brasil –  fazemos parte do povo africano, como propõe o filósofo afroamericano Molefi Kete Asante, ao unir todos os descendentes dos que foram arrancados de África para a escravização.

Nós não somos a população negra porque como “população negra” somos apenas os descendentes das milhares de pessoas que foram arrancadas de sua terra, raptadas, violadas, submetidas a trabalho insano à base do chicote… 

“População negra” é uma expressão “inventada” pelo colonizador para se referir àqueles que servem, que são sub-raça, “quase humanos”, sempre usada em sentido pejorativo e/ou ofensivo.

Quando demonizaram nossa existência, nos batizaram com o nome e com a religião dos colonizadores e nos separaram dos nossos, da nossa tribo, nos desconectaram de nossa origem, de nosso modo de existir, assassinaram – e seguem assassinando – a nossa identidade. 

E a nossa identidade é central na nossa vida! No nosso documento de identidade deveria ter, além da nossa foto, o nosso nome, o nome dos nossos pais, a nossa origem, nosso modo de viver, nossos valores, nossa espiritualidade… Perdemos tudo isso com a escravização, com a abolição, com a democracia, na qual, “todos são desiguais perante a lei” (?) e sem direito a resgate!

Apagaram deliberadamente a nossa existência da história – o currículo escolar ainda não contempla a África como berço da Humanidade, sua riqueza, diversidade, sua  amplitude, ponto de partida para as filosofias, para as ciências, para a matemática, para a arquitetura, para a escrita

África com textura de digital humana (Imagem: Reprodução)
África com textura de digital humana (Imagem: Reprodução)

Reconfiguraram a geografia a partir de princípios político-religiosos: cristãos formam o Ocidente e o “resto”, o Oriente! 

O cristianismo-católico transformou a santificação das pessoas – que acontecia naturalmente, pelo reconhecimento popular – em direito papal, do Vaticano! Daí, por exemplo, termos duas primeiras santas católicas: Ifigenia da Etiópia, no século I, eleita pelo povo, e Josephina Bakhita, canonizada!  

É verdade, muitos de nós estamos acostumados com essa coisa de “ser preto” – mas nem todos os pretos se sentem confortáveis com essa indetificação que nos impuseram. Precisamos fazer o caminho de volta, o Sankofa, para voltar a vir a ser, para resgatarmos quem somos, nossas riquezas, para além da estética – importante destacar.

Nós somos mais que exuberância nos traços, no cabelo, no corpo  – nós não somos“moda”, “exotismo”… Somos a própria humanidade, com seus prós e contras. É comum esquecermos que humanidade não é sinônimo de perfeição

Precisamos sair da agenda do colonizador, da branquitude e assumir o protagonismo da história que queremos viver.

Africano ou negro?

Para a pesquisadora pan-africanista Anin Urasse, um dos nossos grandes problemas como povo, na atualidade, é ter deixado de ser africano para se tornar “negro”. E isso não aconteceu por acaso.

Em diferentes livros, o sociólogo Clóvis Moura e a historiadora Lélia Gonzalez, ao registrarem a incansável luta contra a escravização no Brasil, contam que na linha de frente sempre estiveram os africanos. Os que já eram considerados brasileiros  – domesticados, tendiam a aceitar a condição à qual foram relegados.

Não é por acaso que acontece a “devolução” de africanos escravizados para a África. A branquitude vivia com medo das constantes rebeliões que não eram bem sucedidas devido à traição dos chamados “crioulos” – descendentes de africanos nascidos no Brasil sob grilhões.

Leia os artigos Felicidade Guerreira e Mama África, cidadania ancestral

E esse não é um dado confortável… A “identidade negra” é inventada e validada pelo colonizador. Identidade que, até hoje, só nos enfraquece – ouso dizer que nossa insistência em colocar brancos para nos representar nas câmaras municipais e assembleias legislativas contam muito de quem não somos, ainda. Precisamos nos reencontrar!

A gente canta o hino nacional, mas o Brasil não é e nunca foi “pátria mãe gentil” com o povo africano nem nascido na África nem nascido neste território – o estado da Bahia, com mais de 80% da população negra, tem  mais de 2,2 mil mortes violentas registradas nos primeiros seis meses de 2024, só para citar um exemplo..

Povo 

O intelectual sengalês Cheikh Anta Diop ensina que “população é um povo que perdeu a consciência histórica” – e este é o nosso desafio no século XXI: resgatarmos quem somos.

No Brasil – compara Anin Urasse -, se fala em povos originários e em população negra – que nos restringe a pensar em números e não em cultura. “Nos foi tirada a identidade africana a escolhemos não resgatá-la por uma visão política muito mais voltada para a latinidade do que para a africanidade”.

A pesquisadora se refere à luta política do Movimento Negro Unificado – MNU, nas décadas de 1970 e 1980, junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE para definir como “negras” todas as pessoas pretas e pardas nascidas no país para a elaboração do censo demográfico – voltaremos ao assunto nos próximos parágrafos.

E para exemplificar a defesa de sua tese de resgate de nossa condição de “povo africano”, como sinônimo de força e identidade, Anin Urasse recorda o dia da posse de Sonia Guajajara e de Anielle Franco como ministras, respectivamente, dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial, no dia 11 de janeiro de 2023.

Sonia Guajajara estava rodeada pelos seus e tudo aconteceu de acordo com o ritual deles, na língua deles, inclusive na hora de cantar o Hino Nacional… Na posse de Aniele, agradeceu-se a Deus, aos ancestrais e assinou-se o papel, tudo em português, muito “civilizado”…. 

Como seria a posse nos nossos termos, africanos? – fica a reflexão.  

Selvagem x civilizado

É comum as pessoas relacionarem tudo que é de África com o “selvagem”. E enfatizo o “selvagem”, entre aspas, porque, na minha cabeça, selvagem é quem escraviza, quem tortura, desrespeita, viola. 

A ideia de civilizado x selvagem é completamente distorcida e nós temos “comprado” essa ideia por não darmos conta das demandas de viver o cotidiano em uma sociedade racializada e racista.

Às vezes, a gente não percebe, inclusive, “parceiros antirracistas”, como o sociólogo Florestan Fernandes, que identificava problemas psicológicos nos escravizados e não conseguia identificar os mesmos problemas nos brancos, por ser o povo que estava escravizando.

Nos anos 1970, o MNU celebrava este intelectual branco que chegou a afirmar que, pelos problemas causados pela escravização, o negro não teve condições de competir em igualdade de condições com os imigrantes, que chegaram muito inteligentes e dispostos ao trabalho.

Aquarela brasileira

Mas nada tira o valor do Movimento Negro, fundamental em nossa luta por liberdade, desde o Quilombo dos Palmares.

Voltando ao censo demográfico nos anos 1970 e 1980, vale lembrar que na luta para que a “população negra” fosse compreendida pela soma de pessoas de pele preta e pessoas de pele parda existia uma lógica, que possibilitou que nós, na atualidade, desfrutemos  de políticas afirmativas, como a Lei de Cotas.

A questão muda de figura quando assistimos, no século XXI, povos indígenas, brancos e latinos reivindicando para si a mesma classificação de pardos.

Leia o artigo O que significa ser pardo no Brasil?

Eu gosto muito da expressão “afrodescendente”. Eu me assumir  como afrodescendente fala muito mais de quem eu sou

Cabe aqui, também, lembrar a tese do colorismo – a meu ver, mais uma estratégia dos racistas de plantão. É raso demais nos definirmos pela cor da pele, pelo fenótipo… Já passamos por esta fase.

Em 1976, antes da ação do MNU junto ao IBGE, aconteceu um censo em que 54% da população se declarava branca, preta, indígena, amarela ou parda,  enquanto 46% da população se identificava em 136 cores diferentes – alvinha, amarela queimada, azul-marinho, branca melada, branca suja, canela, jambo, morena-parda, rosa queimada… E eu insisto: quando nos dividimos, criamos dificuldades para avançar e facilidades para quem sempre esteve no poder.

Identidade racial?

Para o historiador  Douglas Araújo, “o grande ponto que pega em relação à identidade negra no Brasil é que ela não é 100% subjetiva; parte dela é objetiva…  Essa identidade não é informada não só pela nossa subjetividade, mas pela maneira como o mundo nos identifica.“

E ele lança uma provocação para refletirmos:

“Uma  pessoa não auto declarada negra sofre racismo, ela é considerada negra por nós?

Me permito responder:

De acordo com a Lei 14.532/2023, racismo é crime,  crime inafiançável. Este é um fato e – na minha opinião – não importa a consciência racial da pessoa vítima de tal crime. É preciso que se cumpra a lei.  

Vale lembrar, ainda, que quando o MNU lutou para que pretos e pardos fossem considerados integrantes da população negra no censo demográfico, ficou definido que  mesmo que a pessoa parda não se reconhecesse como negra ela teria acesso a todas as políticas afirmativas que fossem conquistadas

É bem verdade que, na época, só os negros se “encaixavam” na categoria “pardo”.

Origem

De qualquer modo, a proposta deste artigo é não pensar em identidade racial, mas identidade como origem. O que nos identifica é a nossa origem, a nossa cultura.

A partir daí, cabe nós nos perguntarmos: 

O que é mais importante: como eu me identifico ou como o outro me identifica? 

Precisamos refletir a respeito, conversar, debater como é que a gente vai avançar. Porque, de verdade, o outro pode me ver como ele quiser, mas eu tenho que saber quem sou. 

Eu, Tania Regina Pinto, sou uma mulher africana nascida no Brasil, afrodescendente. Faço parte do povo africano em diáspora. Existo a  partir do que este povo contempla como estar no mundo, que é a cosmo percepção, a coexistência, a consciência de que eu sou porque existiram os que vieram antes. O mar é o meu terreiro. Minha força vem do vento, está no meu sorriso, na minha escrita, no meu dançar…

Luta por poder

É importante termos o entendimento, também, que a “questão de raça” é apenas o pano de fundo da nossa luta maior, que existe desde sempre, que é por poder, por recursos.

Silvio Humberto, economista, vereador por Salvador (BA), acredita que podemos até acabar com as desigualdades sociais e raciais, mas não com o racismo, exatamente porque  o grande embate entre melaninados e não melaninados é por poder, econômico e político, nesta ordem.

Quando analisamos todas as leis que nos alijaram e alijam dos processos para existir, percebemos que elas passam pela questão da terra, da educação… 

E temos assistido a governos que escolhem deliberadamente não educar, não alfabetizar, tirar do currículo disciplinas que estimulam o pensar, como a filosofia – “investimentos”, incontestáveis, no retrocesso.

A somar-se, a invasão de quilombos, o assassinato de quilombolas;  a expansão do agronegócio em paralelo com o encarceramento em massa dos nossos; o armamento da população e nosso povo como inimigo número 1 de todas as polícias, enquanto “nossos representantes na política” (?!) fingem que não existimos.

Olhar o nosso existir em perspectiva é urgente e isso passa, obrigatoriamente, por sabermos quem somos.

. . .

Fontes: livro “O Pacto da Branquitude”, de Cida Bento;  live “Racismo, Identidade  Negra e Sociedade”, Programa Primeiros Negros – Origem, raça ou cor?,  g1

Escrito em julho 2024

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