Movimento Negro, movimentos antirracistas
A luta continua!
- Beth Brusco e Tania Regina Pinto
Movimentos Negros Antirracistas. Ao fundo, 13 de junho – Em Londres, manifestantes gesticulam e gritam durante um protesto do ‘Black Lives Matter’ após a morte de George Floyd, nos EUA. (Foto: Simon Dawson/Reuters)
Controlamos uma pandemia que assolou o mundo. Foram mais de 6 milhões de contaminados só no Brasil, com o triste saldo de cerca de 700 mil mortos!
Somos, segundo dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 205,5 milhões de brasileiros, dos quais 112,7 milhões, 54%, a maioria, são negros e pardos, afrodescendentes.
O mesmo instituto informa ainda que o povo preto representa 70% do grupo abaixo da linha da pobreza, os mais vulneráveis!
Como sociedade, apesar dos desmandos do governo federal, controlamos o vírus da covid 19, extremamente letal, mas ainda não eliminamos o racismo, a discriminação e o preconceito racial há muito mais tempo entre nos!
Passados 134 anos da decretação do fim do sistema escravocrata no país, que perdurou por mais de 380 anos, negros e negras ainda são vítimas da opressão, da violência, do desrespeito, do controle dos corpos e da desumanização que dão suporte ao racismo estrutural forjado pela branquitude para perpetuar-se no poder.
Mas seguimos em luta pelo direito à própria existência, por respeito, dignidade, reconhecimento, justiça. Luta sem fim e sem trégua desde que os corpos de nossos ancestrais foram sequestrados na África.
Homens e mulheres, negros e negras, se organizam, desde sempre, em movimentos antirracistas. E assim chegamos ao século XXI, a 2022 e assim avançaremos… Com o compromisso de realizar os ideais de todos e todas ativistas que vieram antes.
Grandes mobilizações
Impossível detalhar, em um único artigo, toda a magnitude dos movimentos antirracistas, estratégias, lideranças, bandeiras, entraves, barreiras transpostas, sangue derramado, vidas perdidas, perseguições, conquistas…
Em comum – e sempre -, o medo branco do movimento negro organizado que, na essência, em todos os tempos, exige igualdade de direitos, justiça, dignidade para o povo preto; resiste, persiste, se reinventa e se re-une para insistir na luta contra o racismo, contra o excesso de força policial e na denuncia do genocídio do nosso povo, em especial, dos nossos jovens.
O que difere os vários movimentos antirracistas, no entanto, é a maneira de triunfar nesse ideal. Por isso, houve e há, no Brasil e fora dele, correntes de atuação diferentes para o mesmo propósito.
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Aqui, para melhor compreensão e celebrando nossos vários caminhos de resistênca e re-existência, um pouco dos movimentos negros antirracistas organizados, que ganharam mais evidência no Brasil e nos Estados Unidos:
Ano de 1597: Quilombo dos Palmares
A maior e mais importante comunidade quilombola do Brasil surge na capitania de Pernambuco no final do século XVI, formada por escravizados em fuga dos engenhos de açúcar da região.
Ao longo de seus 100 anos de existência resiste a inúmeras investidas das duas maiores potências marítimas e militares da época – Holanda e Portugal – até ser literalmente destruído para que desapareça da história o que seria um símbolo da resistência negra!
Só que mais que resistência, Palmares transmite a mensagem de luta, de esperança, para africanos e não africanos. É a possibilidade de vida livre, digna, sem opressão e sem fome. Em outras palavras, uma ameaça permanente para os negócios dos colonizadores nada afeitos ao trabalho.
Mas a Pequena Angola – nome original do quilombo – vive em nós!
É sinônimo de luta negra, política e existencial!
É a pedra fundamental, o marco do ativismo negro em território nacional. Conta de nossa potência, de nossa excelência. Pensar na total destruição do maior quilombo do Brasil e da América Latina é falácia, sofisma, raciocínio falso que simula a verdade!
Estamos aqui, quilombolas!
Estamos aqui e continuaremos aqui como quilombolas, não admitindo a dominação branca sobre a existência negra!
Leia mais no artigo Quilombo dos Palmares.
Ano de 1611: Movimento abolicionista
A história do abolicionismo no Brasil remonta à primeira tentativa de abolição da escravidão indígena no Brasil, em 1611, e aos movimentos emancipacionistas no período colonial. O movimento abolicionista começa na senzala, com as rebeliões negras nos tempos da escravização dos nossos ancestrais, como a Revolta dos Búzios e a Revolta dos Malês, ambas na Bahia.
Após a Independência do Brasil, as discussões sobre abolição estendem-se por todo o período do Império à medida que, diferente de outros países da América Latina, a retirada do colonizador do território nacional não significa o fim das correntes para o povo negro.
O Movimento Abolicionista une pessoas de diferentes classes sociais, que se organizam e pressionam o Império para que a escravidão seja abolida no país, das maneiras as mais diversas, ao longo das décadas de 1870 e 1880. Entre as formas de resistência, vale destacar os grandes embates parlamentares e as manifestações artísticas.
Não apenas a parcela livre da sociedade, mas também a resistência dos escravizados fazem parte do movimento com rebeliões, fugas em massas e recorrências aos tribunais para conseguir a liberdade.
André Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Castro Alves estão entre personalidades que atuam pelo fim da escravidão no Brasil. Tardiamente, em 13 de maio de 1888, é assinada a Lei Áurea, que não contempla as principais bandeiras do movimento abolicionista, como programas de educação e reforma agrária voltados à emancipação dos libertos.
Ano de 1931: Nação do Islã
O grupo separatista e nacionalista, a favor da luta negra chamado Nação do Islã tem na sua base membros islâmicos negros dos Estados Unidos.
Se dissemina por todo o país até os anos 1960, infiltrando-se em locais onde há maior fragilidade social dos negros, como subúrbios de grandes cidades, orfanatos e casas de apoio.
Em 1946, recebe seu membro mais eloquente e persuasivo, Malcolm Little, que se torna Malcolm X, quando se converte ao islã, em negação ao nome da família do senhor de escravos, quando da escravização dos seus.
A conversão de Malcolm acontece após sua prisão por tráfico de drogas. Encarcerado, ele se dedica ao estudo do Islamismo. Livre, passa a combater as violências de cunho racista ocorridas no país, espalhando o discurso próprio da Nação do Islã: a superioridade do homem negro; a demonização do branco; o que entendia como “a verdadeira fé”, o islamismo; os direitos afro-americanos e a formação de uma comunidade de negros separada da dos brancos.
Em nome da Nação do Islã, Malcolm viaja por todo os EUA. Funda mesquitas e faz palestras incitando todos os negros contra a exploração dos brancos. E é tão bem sucedido em sua atuação que, por volta de 1960, conta com cerca de 100 mil seguidores!
Eloquente, radical, não demora, Malcolm se desentende com membros da própria ordem, incluindo o líder Elijah Muhammad, até ser expulso da Nação em 1964.
Leia O Pesadelo Americano, polêmico discurso pela resistência afro-americana nos Estados Unidos, proferido pelo então ministro do Templo do Islã, Malcolm X, que marca a abertura do filme de Spike Lee sobre o líder.
Depois de realizar seu Hajj, viagem obrigatória de todo crédulo de Alá para a cidade santa de Meca, Malcolm volta para a América transformado: refuta a ideia da maldade intrínseca dos brancos, declara que o racismo advém de um sistema classista e preconceituoso materializado e acumulado no capitalismo atual, mas ainda prega a possibilidade de um estado autônomo só para os negros.
Os brancos temem que suas declarações incentivem revoltas em massa. Isso porque ele argumenta que, se for necessária, a violência deve ser utilizada para melhorar a vida dos negros.
Nova York, 21 de fevereiro de 1965: Malcolm é assassinado, antes de completar 40 anos, por três homens negros, com vários tiros na cabeça e no tórax.
Sua morte ora é associada a ativistas da própria Nação do Islã, ora a entidades do governo como o FBI, a polícia federal dos Estados Unidos. O fato é que, até hoje, não se sabe quem mandou matar Malcolm X.
Com seu assassinato, o movimento negro ganha novo fôlego, irrompendo em movimentos mais radicais como o Partido dos Panteras Negras.
Setembro de 1931: Frente Negra Brasileira
A Frente Negra Brasileira é a maior e uma das primeiras organizações negras do século XX, a exigir igualdade de direitos e participação dos negros na sociedade brasileira.
Se autodenominando “órgão político e social da raça”, a Frente Negra conquista dimensões inusitadas. É o primeiro partido político negro do país, uma vanguarda com o objetivo de preparar o negro para assumir um lugar na representação do povo brasileiro no Congresso Nacional.
Como precursora dos movimentos ativistas que até hoje lutam contra o racismo, a Frente Negra, também, é a primeira no país a mostrar uma ação coletiva dos negros, a partir da participação política e da presença no debate nacional.
Orquestra protestos contra a discriminação racial em lugares públicos. Confronta hotéis, bares, barbeiros, clubes, guarda-civil, departamentos de polícia que proibiam a entrada de pessoas negras… Marca presença.
Como movimento de massas, proporciona à população desassistida e marginalizada não só assistência social, mas um meio de organização e combate ao preconceito.
Sob a liderança de Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite, a organização desenvolve, ainda, atividades de caráter cultural e educacional para os seus associados. Realiza palestras, seminários, cursos de alfabetização, oficinas de costura e festivais de música.
Em sua sede na capital paulista, mantém o jornal O Menelik como porta-voz da entidade, sucedido pelo O Clarim d’Alvorada. Ganha adeptos em todo o país, inclusive os jovens Abdias Nascimento e Sebastião Rodrigues Alves.
É a semente inspiradora para a criação dos Panteras Negras nos Estados Unidos.
Outubro de 1945: Pan-Africanismo
A ideia central é a África para africanos e afrodescendentes, como um Estado soberano, livre da opressão, identificado com a sua ancestralidade.
‘Nós por nós’ é um outro modo de explicar o nacionalismo negro proposto pelo Pan-Africanismo, com o retorno ao berço da Humanidade para que todos tivéssemos conhecimento de nossa origem, maculada pela escravidão.
A meta do movimento é promover a estruturação social do continente, por meio de um remanejamento étnico na África, unindo grupos separados e separando grupos rivais. E, ainda, resgatando práticas religiosas, como o culto aos ancestrais, e incentivando o uso de línguas nativas, proibidas pelos colonizadores quando da escravização do povo.
O Pan-Africanismo ajuda a imaginar África como uma só força e mobiliza a luta pela independência dos países colonizados no continente, como a protagonizada por Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, nos anos 1960.
Entre os principais idealizadores do Pan-Africanismo, William Edward Burghardt Du Bois, Marcus Musiah Garvey, Alexander Crummell e os pensadores Sylvester Williams, George Padmore e Edward Wilmot Blyden.
Ano de 1954: Movimento dos Direitos Civis
O Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos reclama o fim da segregação racial, em especial nos estados do sul do país, e a luta por igualdade de direitos, incluindo o direito a voto.
A “Grande Marcha por Emprego e Liberdade” sobre Washington, em 28 de agosto de 1963, com mais de 250 mil participantes, dá outra dimensão ao movimento.
Na ocasião, o líder e pastor Martin Luther King Jr. profere o discurso “Eu tenho um Sonho” que, até hoje, ecoa nos movimentos antirracistas. E, desde então, diversos direitos foram conquistados no seu país:
“…Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça…”
O Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos reclama o fim da segregação racial, em especial nos estados do sul do país, e a luta por igualdade de direitos, incluindo o direito a voto.
A “Grande Marcha por Emprego e Liberdade” sobre Washington, em 28 de agosto de 1963, com mais de 250 mil participantes, dá outra dimensão ao movimento.
Na ocasião, o líder e pastor Martin Luther King Jr. profere o discurso “Eu tenho um Sonho” que, até hoje, ecoa nos movimentos antirracistas. E, desde então, diversos direitos foram conquistados no seu país:
“…Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça…”
Luther King, além dos estudos de teologia, se dedica a aprender sobre personalidades que se dedicam à luta por direitos civis, usando como arma os próprios corpos, em atos de desobediência civil e de protesto pacífico, como Gandhi, na Índia.
Saiba mais sobre Martin Luther King e leia seu discurso “Eu tenho um sonho”, na íntegra, aqui.
Esses estudos dão a ele o suporte teórico e a inspiração para a sua militância, bem como o Prêmio Nobel da Paz, por combater o racismo nos Estados Unidos de forma pacífica, em outubro de 1964.
No mesmo ano, o Congresso americano aprova a Lei dos Direitos Civis, que proíbe diversas leis de segregação racial.
Luther King é assassinado em 4 de abril de 1968, na cidade de Memphis.
Outubro de 1966: Panteras Negras
O Panteras Negras surge em um cenário de efervescência social, após o assassinato de Malcolm X. A cada protesto negro, maior a violência policial, maior a violência branca. Na tentativa de dar um basta na situação, os universitários negros Huey Newton e Bobby Seale, de Oakland, Califórnia, criam o movimento.
Só que, diferente da proposta do pastor batista Martin Luther King – que defendia a luta negra pela desobediência civil e por protestos pacíficos -, os Panteras advogavam pela autodefesa armada dos negros contra a violência do Estado, como os negros da Nação do Islã, de Malcolm X. E, para justificar, citavam a 2ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que dá direito aos cidadãos de portar armas.
O Partido dos/das Panteras Negras, originalmente Partido Pantera Negra para Autodefesa, surge como uma organização urbana socialista e revolucionária, e estabelece em um Programa de Dez Pontos suas principais exigências.
Entre elas, a autodeterminação dos negros, o acesso a itens básicos de sobrevivência e o fim da violência.
Ao longo de sua existência – 1966 a 1982 – é duramente perseguido pelo FBI.
Um dos ícones da organização, e filósofa norte-americana Angela Davis, em entrevista a Mano Brown no podcast Mano a Mano, do dia 28 de outubro de 2022, destaca “a importância dos programas de sobrevivência, com projetos educacionais, de assistência médica e alimentação gratuita, entre outros que apoiavam a comunidade, ao mesmo tempo que se incentivava o povo negro a se erguer e resistir. Isso, apesar de “a maioria das pessoas acreditarem que os Panteras Negras eram, apenas, homens negros em pé, portando armas para protestar contra a ocupação de comunidades negras pela polícia”.
Poder Negro – este é o lema, com o punho erguido e a mão fechada.
O Panteras Negras integra o Movimento Black Power!
Julho de 1978: Movimento Negro Unificado
O MNU – Movimento Negro Unificado nasce em 7 de julho de 1978 de um ato de protesto pelo assassinato de Robson Silveira, de 27 anos. Acusado de roubar frutas na feira onde trabalhava, ele é levado à 44ª Delegacia de Polícia de Guaianazes, na zona leste de São Paulo, torturado e morto.
No ato, duas mil pessoas se concentram na escadaria e no entorno do Teatro Municipal de São Paulo, no centro da cidade, e, a partir dele, vários representantes de movimentos que, à época, lutam pela igualdade racial unem-se e decidem formar o movimento unificado, mais forte e coeso.
Entre as conquistas do MNU, a transformação de Zumbi em símbolo de luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos para os afrodescendentes e a transformação do 20 de Novembro, que marca o assassinato do líder do Quilombo dos Palmares em 1695, em Dia Nacional da Consciência Negra.
O MNU não reconhece o 13 de Maio como um dia a ser celebrado pelo povo preto. Até porque o fim do sistema escravocrata no Brasil nunca foi sinônimo de liberdade para os escravizados que acabaram entregues à própria sorte, sem nenhum tipo de assistência do poder público.
As conquistas do povo negro têm o DNA do MNU, o que inclui a proibição da discriminação racial na Constituição Federal de 1988; a criação da Lei Caó, de 1989, que tipifica o crime de racismo no código penal, e a Lei de Cotas.
Ano de 2013: #VidasNegrasImportam
Black Lives Matter ou, em versão nacional, Vidas Negras Importam é um dos movimentos antirracistas de maior visibilidade no século XXI, com origem na comunidade afro-americana, que ultrapassa fronteiras em campanha contra o racismo e a brutalidade policial direcionada às pessoas negras.
25 de maio de 2020, Minneapolis, Minnesota (EUA) – “Eu não consigo respirar” – este é o apelo do homem negro, americano, George Perry Floyd Jr., assassinado por um joelho branco em seu pescoço, durante oito minutos e quarenta e seis segundos, enquanto estava deitado de bruços na estrada. Tudo em uma abordagem policial por acusação de ter usado uma nota falsa de 20 dólares em um supermercado.
Leia mais sobre a violência policial que atinge o povo negro e fortalece os movimentos antirracistas na luta pela existência negra no artigo A Falta do Ar.
Este o fato que faz eclodir, mundialmente, um movimento de combate à desigualdade racial e ao genocídio do povo preto, com pessoas de todas as raças exigindo providências e políticas públicas em respeito às nossas comunidades.
Neal Caren, professor de Sociologia da Universidade da Carolina do Norte, especialista em movimentos sociais contemporâneos nos EUA, afirma que “em intensidade e em alcance geográfico, é o movimento de protesto mais amplo da história dos Estados Unidos”.
“Nunca antes houve tantos protestos, durante tanto tempo e em tantas comunidades diferentes”, destaca Sílvio Almeida, advogado, filósofo e professor. “O movimento Vidas Negras Importam mostra ao mundo a realidade sofrida por afrodescendentes em vários países”, afirma o também advogado, jornalista e professor de Políticas de Diversidade na Fundação Getúlio Vargas, Thiago Amparo.
Ano de 2019: Coalizão Negra por Direitos
Tudo começa no início de 2019 quando um grupo de ativistas se organiza para visitar parlamentares negros em Brasília. “A partir desse encontro, cria-se a possibilidade não só de articulação com e entre esses parlamentares”, conta a jornalista e escritora Bianca Santana, integrante da Coalizão Negra por Direitos.
E o resultado, no final do mesmo 2019, é a construção da agenda de 25 pontos – o norte de todos os candidatos –, que vai do direito à educação pública, gratuita, laica e de qualidade até a demanda por uma nova política de drogas, passando por temas como demarcação de terras, violência contra a mulher, encarceramento em massa e racismo ambiental.
A Coalizão é uma organização social que reúne mais de 250 entidades do movimento negro na luta antirracista em território nacional.
É vista como a maior e mais importante articulação de movimento negro da geração atual, que se apresenta com o ineditismo de um projeto dos negros para o Brasil a partir do aquilombamento nos parlamentos. Ao mesmo tempo, representa a continuidade de um processo longo, histórico, político do movimento negro no Brasil.
A ideia de aumentar a representação na política institucional de pessoas negras comprometidas com uma agenda antirracista de desenvolvimento está na gênese, na origem da Coalizão.
A ideia de aumentar a representação na política institucional de pessoas negras comprometidas com uma agenda antirracista de desenvolvimento está na gênese, na origem da Coalizão.
Não por acaso, em junho de 2022, quatro meses antes das Eleições, é lançada a iniciativa Quilombo nos Parlamentos, para apoiar e fortalecer pré-candidaturas de pessoas negras na disputa por vagas no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas. O primeiro saldo é de 27 candidaturas vitoriosas.
A trajetória política da organização tem como marco inicial o lançamento do manifesto “Enquanto Houver Racismo Não Haverá Democracia”, publicado em 2020.
Desde então, a Coalizão promove atividades de formação, de capacitação técnica e de busca por recursos financeiros para dar suporte a diversas iniciativas, além de criar plataformas que ajudam a ampliar relações entre os diferentes grupos e movimentos sociais.
Outra marca que a Coalizão evidencia é o protagonismo das mulheres negras na política – chega de trabalhar nos bastidores, no disfarce! Além de disputar as narrativas impostas pelo racismo, as integrantes do movimento negro querem disputar os mandatos. E em 2022 já são vitoriosas!
A potência do movimento negro na atualidade está nos partidos à esquerda.
Ano 0: Guerreiras Pretas, sem fardas nem armas!
Na linha do tempo dos movimentos antirracistas que marcam a história do povo preto na luta por liberdade muitas são as lideranças negras, muitos os homens negros que se destacam. Mas nos permitimos este último intertítulo para celebrar o protagonismo da mulher preta na luta antirracista, sempre incansável, abalando as estruturas políticas e policiais, de ontem e de hoje.
A mulher negra não é vista mas está presente em todos os lugares, fundamental na luta! “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, nos ensina a ativista dos Panteras Negras e filósofa norte-americana Angela Davis.
E Angela vai além. Em entrevista no podcast Mano a Mano, além de destacar (acredito que pela milionésima vez) que “66% dos integrantes das Panteras Negras eram mulheres” – daí o nome! – coloca as mulheres negras como “as ativistas mais importantes dos movimentos antirracistas no mundo” e cita como exemplo brasileiro, as mulheres do candomblé – presentes nas próximas linhas deste texto.
E não adianta o mundo se esforçar, ‘em massa’, para que tudo se movimente, funcione, desde que esta mesma mulher negra mantenha-se oculta, na escuridão, invisível.
É ela quem tudo vê, quem tudo ouve. Está na favela, no palacete, servindo cafezinho, fazendo faxina, cuidando da estética, da saúde, da política, da educação, da cidadania nossa de cada dia.
A memória do ativismo feminino preto tem como ponto de partida a escravização do nosso povo, mas é de todos os tempos.
Começando pelo fim…
Todo mundo conhece, pelo menos de ouvir falar, o movimento Vidas Negras Importam, Black Lives Matter… Mas quantos sabem que o movimento foi criado por três mulheres negras – Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi – que, no ano de 2020, estiveram na lista das 100 mulheres inspiradoras escolhidas pela BBC, corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido, fundada em 1922.
Elas fundaram um movimento baseado em uma hashtag – forma de ressaltar ideias e juntar publicações sobre um tópico – das redes sociais, transformando a política.
Isso, lá em 2013, quando George Zimmerman, homem acusado de matar o adolescente negro Trayvon Martin, foi considerado inocente na Justiça. Na época, Alicia Garza fez uma postagem indignada no Facebook.
Seu texto, em que dizia estar passando por um luto, incluía a frase “black lives matter” e foi uma faísca. Sua amiga Patrice Cullors leu a publicação e escreveu uma resposta, transformando a expressão de Garza em uma hashtag: “#blacklivesmatter”.
Viajando no tempo…
Até o final do século XIX, com seus bolinhos de feijão-fradinho fritos em azeite de dendê, as baianas do acarajé garantiam a compra de cartas de alforria para os escravizados com a venda da iguaria. As jornaleiras, ao vender jornais, convocavam, à boca pequena, para reuniões de abolicionistas. As mulheres, com suas saias rodadas nos jogos de capoeira, disfarçavam o treino da luta pela liberdade!l São muitas as protagonistas anônimas no ativismo feminino!
Mas a história de muitas delas também vem sendo resgatada. No 7 de julho de 1823, data da verdadeira independência do Brasil, da saída das tropas portuguesas do país, as insurreições políticas na Bahia têm a participação negra e feminina silenciada. É Maria Felipa de Oliveira, mulher negra que trabalha na Ilha de Itaparica com pescado quem consegue arregimentar outras mulheres negras e indígenas para lutar.
É ela quem comanda um grupo de cerca de 40 mulheres para, primeiro, seduzir os portugueses e, depois, atear fogo em 42 embarcações aportadas na Praia do Convento para atacar a capital. A ela também é atribuída uma surra de cansanção – planta tóxica que dá sensação de queimação – nos soldados.
Os documentos da época não falam do ativismo feminino no processo abolicionista, mas, na imprensa, as mulheres negras aparecem em grande quantidade nos registros policiais. Elas faziam a mobilização.
Contar suas histórias, suas estratégias de luta, fortalece nossa disposição de luta e nossos saberes.
Na outra América também, mulheres negras já se organizavam para comprar alforria no início do século XIX. Lá, como aqui, havia muito porque lutar. Na Louisiana, elas eram colocadas em celas com prisioneiros do sexo masculino, engravidavam e seus filhos – nascidos de pais afro-americanos cumprindo sentenças de prisão perpétua – eram considerados propriedade do Estado e leiloados nos degraus do tribunal. O dinheiro arrematado financiava escolas para crianças brancas.
E tem mais sobre o protagonismo feminino nos movimentos antirracistas no artigo Guerreiras Pretas, sem fardas nem armas!
Mas, para encerrar este Sem Mordaça, vale resgatar mais uma fala de Angela Davis na entrevista para Mano Brown, sobre o papel da mulher ao longo da história e uma expectativa de futuro ideal:
“Se vamos alcançar a unidade, para além dos limites de gênero, unidade que reúna homens negros e mulheres negras e pessoas negras dissidentes de gênero, é importante reconhecer o papel da mulher negra. É importante que os homens negros utilizem metodologias feministas (…) E quando me refiro ao feminismo negro, não falo de algo para excluir homens negros, mas de uma luta abrangente, antirracista, anticapitalista, que se opõe à injustiça de gênero e que pode potencialmente salvar o mundo. (…) Éé importante que os homens negros reconheçam que as mulheres negras lutam há centenas de anos e sempre defenderam os homens negros e, agora, é a hora de os homens negros também defenderem as mulheres negras.”
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Novembro 2022
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