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O DNA do “Colorismo”

- Tania Regina Pinto

Ilustração das artistas francesas Aline e Célia (Foto: Reprodução/Instagram @sacree_frangine)

Estratégia do racismo estrutural para manutenção do poder nas mãos da branquitude, a tese do colorismo – que divide o povo preto de acordo com o tom da pele – manipula nosso entendimento de consciência racial e faz com que neguemos nossa existência como seres humanos, filhos e filhas de um pai e uma mãe, com sentimentos únicos…

“Maria José, não deixe suas filhas se casarem com moços mais escuros que elas. Se não, seu netos serão chamados de ‘negrinhos’”, aconselhava “Nicolina Bispo não repete ano” – assim ela se identificava – sempre que ia ao Salão de Beleza Mocambo, da minha mãe, arrumar a peruca que escondia seu cabelo carapinha.

A professora primária não devia saber que era chamada de “cabrita”, preta de pele clara.

E assim é que é. Não importa o tom da pele das pessoas pretas, sempre haverá um xingamento, um modo de roubar/negar a condição de ser humano dos que nasceram ou descendem do continente africano, por ironia, reconhecido pela ciência como Berço da Humanidade!

Leia mais, no final deste artigo, sobre letramento racial e expressões racistas que negam nossa condição de seres humanos.

Conheço muitos negros e negras – frutos de relações interraciais consentidas ou não – que acreditam (e até se culpam) por “sofrer menos” porque têm a pele clara. Será mesmo que sofrem menos? Será que temos como comparar/ pesar/ medir sofrimento, entre nós, todos com o mesmo passado de sequestro, tráfico, estupro, chibata e presente de violência, encarceramento, injustiça, desemprego, miséria, exploração?

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Vale reproduzir parte da cena que Toni Morrison descreve nas páginas 150,152 e 153 no livro Amada, contando do nosso passado em comum:

“…46 homens acordaram com um tiro de rifleTrês homens brancos percorreram o fosso destrancando as portas, uma a uma. Ninguém saiu para fora. Quando o último cadeado foi destrancado, os três voltaram e levantaram as grades, uma por uma… Outro tiro de rifle indicou que deviam subir para o chão acima, onde se estendiam 300 metros de corrente… Cada homem se curvava e esperava. O primeiro pegava a ponta e passava pela argola no ferro de sua perna. Endireitava-se então, afastava-se um pouco e entregava a ponta da corrente para o prisioneiro seguinte, que fazia a mesma coisa… Ninguém falava… Pelo menos não com palavras… olhos diziam ‘Me ajude’ ou ‘Cuidado’, querendo dizer ‘hoje pode ser o dia em que como minha própria porcaria ou fujo’ e esta última coisa tinha de ser evitada, porque se um largava a marreta e fugia, todos os 46 eram arrastados pela corrente que os prendia e nunca se sabia quem ou quantos seriam mortos…”

E, em um salto para o século XXI, registre-se a constatação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, sobre o alto grau de vulnerabilidade à violência doméstica e ao feminicídio de mulheres negras:

… Entre as vítimas de feminicídio, 37,5 % são brancas e 62% são negras e, nas mortes violentas, 70,7% são negras e 28,6% são brancas”.

“Um quadro como esse não surge do nada. Há todo um processo de desumanização das pessoas negras que gera esses números. De um lado, temos um Estado que se organizou para não olhar para essas pessoas, vilipendiando suas vidas. De outro, temos uma redemocratização, com perspectiva inclusiva, mas que, em termos históricos, representa muito pouco” – avalia a juíza federal Adriana Cruz. 

Para ela, os números do Anuário refletem uma construção histórica de décadas.

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Exemplos do cotidiano

Conheci uma jovem negra de pele clara – pai preto retinto e mãe loira – que só na universidade percebeu-se mulher preta e “enegreceu” – do vestuário ao trabalho acadêmico. Seu outro desafio? Saber como lidar com a própria família que, até então, nunca havia conversado sobre a questão racial em casa. A mãe branca não se sentindo amada… Ela se sentindo sem lugar… E o pai, mudo.

Recordo Hamilton Bernardes Cardoso, preto retinto, que durante muito tempo escreveu para a Folha de S. Paulo sobre questões raciais, textos primorosos, mas não conseguiu ser contratado como repórter para a Editoria de Política. Dele, o jornal só queria o ativismo qualificado.

E registre-se que é péssimo ter de classificar as pessoas pelo tom da pele – somos mais que isso! Mas este texto exige.

Penso em um sobrinho – hoje com 25, 26 anos -, discriminado no dia a dia desde que foi adotado, ainda bebê, por sua família preta retinta… Preto de pele clara, era chamado todo o tempo de “amarelo”, gerando mais sentimento de exclusão – somada à sua condição de filho não biológico nunca esquecida.

Intolerância

É desumano olhar a vida de maneira dual – certo e errado, é ou não é… As filosofias africanas ensinam que o binarismo invisibiliza a nossa existência, é violento, constrói a intolerância.

Curiosamente, a primeira vez que ouvi a expressão “colorismo” foi durante uma fala da filósofa Djamila Ribeiro a um grupo de estudantes. Fiquei indignada com sua defesa de que “pretos de pele escura sofrem mais que pretos de pele clara”?!

Nos diferenciarmos pela cor da pele – do meu ponto de vista – faz com que não nos reconheçamos em nossa humanidade. A indignação na época – e ainda hoje – é presente porque, na defesa de tal tese, nos enfraquecemos.

Assim como perdemos força quando apontamos o dedo para pessoas negras em relações inter raciais – xingando-as de “palmiteiros”. Ou, ainda, assumimos o papel de juízes impiedosos quando pessoas pretas cometem erros – o que é aceitável nas pessoas brancas!

E o pior: reproduzimos a visão de mundo eurocêntrica, que determina o que é humanidade e não inclui o ser negro, o ser feminino, na sua definição.

Na dobradiça

No Brasil, a grande fake news sobre democracia racial, faz com que ainda hoje homens brancos entendam como elogioso ouvi-los dizer que “adoram uma negra”.

O fato é que muitos negros e negras brasileiras se encontram no limbo no que diz respeito à consciência racial – há quem não saiba que ser “pardo” indica que a pessoa integra a população negra do Brasil, a população não branca.

E isso não é novo! Me lembro do meu início de militância nos anos 1970. Não eram poucos os chamados “mulatos” que se sentiam como dobradiça de janela, questionando o próprio existir:

“Meu pai é preto, minha mãe é branca. O que eu sou?”

Fevereiro de 2023, podcast Mano a Mano, entrevista com a jornalista Flávia Oliveira, o apresentador Mano Brown, do Racionais MC, não deixa dúvida do tamanho do problema que o racismo cria para o povo preto ao afirmar:

“Quase branco. Quase negro. O que é ‘quase’? Não é nada!” 

Flavia Oliveira indica um norte:

“Quando a gente diz: ‘passou de branco é preto’, o que a gente está querendo dizer é: ‘irmãos, unam-se!’ O racismo diz que todo preto é igual. Se nos reconhecemos, nos identificamos, nos fortalecemos. Não somos únicos, mas somos o povo preto”.

Orixá da integração

Senhor das encruzilhadas, da entrada e da saída, das possibilidades, do “e” no lugar do “ou”, Exu derruba o dualismo, a limitação, e propõe o diálogo, a integração

A consciência tende a ser unilateral, reducionista, dualista, esquece que, entre o sim e o não, existe o talvez. Nada é unilateral a visão restrita gera a desgraça. 

Nós que já somos classificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE como “pretos” e “pardos”, a meu ver, reproduzimos o racismo estrutural nos diferenciando por características físicas, abrindo mão do aprendizado proposto pelo mais humano dos orixás.

Negra espiritualidade

O que se registra na Bíblia cristã são histórias da Mitologia Africana. Na santeria cubana, Jesus e Exu se confundem como caminho, porque os dois se apresentam como seres de mediação:

Jesus diz: ‘Ninguém chega ao pai senão por mim’.

– Exu, que veio antes, fala: ‘Ninguém chega aos orixás senão por mim’.

A história judaico-cristão, helênica, do homem formado a partir do barro nada mais é que um dos mitos de Nanã Buruku, a mãe ancestral, mais velha das orixás femininas, rainha das águas profundas, do barro primordial, sábia, ligada ao mundo dos mortos.

Diz o mito… 

“Oxalá tentou criar o homem do ar – mas ele se desvaneceu. 

Tentou a madeira, ficou muito duro. 

Experimentou a pedra, ficou pior ainda, mais duro.

 Testou o fogo e o homem se consumiu. 

Vendo Oxalá na tentativa e erro de criar o homem, Nanã foi às profundezas 

do lodo onde morava, tirou a lama do fundo do lago e deu para Oxalá, mas com a condição de que, na morte, o homem voltasse a ser pó, a ser lama.”

Aí a origem da expressão bíblica: do pó veio ao pó tornará. 

(Eclesiastes 12:7)

Como alerta a escritora moçambicana Paulina Chiziane nem Deus nem Jesus são cristãos. Jesus, aliás, nasceu e morreu antes.

A história construída pela Igreja Católica não tem nada de sagrada. Sempre existiu para justificar uma pretensa ‘superioridade’ da branquitude.

A catequização e a tutela de negros e índios no Brasil é fundamentada na inexistência de alma dos não brancos e na defesa da tese de que “ser escravo é uma questão de natureza”, de ter o “sangue servil”!

Vale assistir o filme O Nascimento de Uma Nação, de 2016, baseado em fatos reais, que conta a história de um escravizado que aprende a ler, escrever, se torna pregador e usa o poder das “páginas certas” da Bíblia para nos manter cativos. 

Rapto e auto resgate

A incontestável riqueza da nossa existência está na apropriação da nossa espiritualidade, da nossa cultura, do nosso saber agrícola e de mineração, da nossa cor, da nossa história, do nosso corpo, do nosso viver, da nossa liberdade… Abolidas as correntes, fomos encarcerados.

Iemanjá, Machado de Assis, Castro Alves, Aleijadinho, Chiquinha Gonzaga, a família Rebouças, José do Patrocínio, Lima Barreto… Tudo gente preta!

Diferentes representações de Iemanjá (Imagem: Reprodução)
Diferentes representações de Iemanjá (Imagem: Reprodução)

Mais que uma questão de pele, ser negro, hoje, é uma postura política, cidadã, de consciência de si, de consciência como povo. Nossa história não começa na escravização dos nossos corpos.

Estamos na criação do mundo – antes de Cristo. Nosso DNA está nas primeiras invenções – escrita, teste de gravidez, instrumentos cirúrgicos, papiros, máscaras, cerveja, maquiagem, escova de dentes, sandália…

A primeira universidade do mundo foi criada em 859 antes de Cristo no continente africano. Só em 229 surgiu a primeira no continente europeu! Mas “branquear” os fatos é um dado da nossa “confusa” realidade, misto de “democracia racial” e desumanização de corpos negros.

Ciência dos bem-nascidos!? 

Nas últimas décadas do século XIX, antes da abolição da escravatura, políticos e intelectuais iniciaram um intenso debate sobre a modernização do Brasil e a construção de sua identidade nacional.

Incomodava a questão racial a maioria da população era não-branca. A mistura de raças, também, preocupava como fator responsável pela degeneração do ser humano.

Assim ganha força a tese de branqueamento, conhecida como “eugenia” – a “ciência dos bem-nascidos”: homens brancos fazendo sexo com mulheres negras, que iriam parir filhos de pele clara até a extinção do povo preto!

Leia detalhes sobre esta proposta da branquitude debatida em congresso internacional, o papel da imigração europeia o Brasil e demais leis criadas com o propósito de fazer desaparecer a população negra do país no artigo “Racismo Científico”.

Preto é preto

Em uma sociedade racista – que discrimina pela aparência, pelo tom da pele, pelo formato do nariz, pelos lábios, pelos cabelos, pela maneira de andar… – não há possibilidade de uma pessoa de ascendência negra esconder a sua origem. Por mais que tente!

Pelé tentou ser ‘supra-racial’, para além da cor, mas nem no auge conseguiu tal feito. Em 1997, o então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, ao participar de um seminário internacional com representantes de países do Mercosul, disse:

“… existem dois pretos que são admirados por todo o Brasil. Um é o Pelé, que é o nosso rei de sempre. O outro é o rei asfalto, todo mundo gosta do asfalto. É o preto que todo mundo gosta”.

O primeiro presidente de República preto do Brasil também tentou, mas o escritor Gilberto Freyre, ao escrever sobre futebol, comparou o esporte ao mulato – que vence usando a malícia e escondendo o jogo – e usou como exemplo “o mulatismo” de Nilo Peçanha, “até hoje a melhor afirmação na arte política”.

AFRODESCENDENTE

Expressões como “afrodescendente”, “afroamericano”, “afrobrasileiro”, existem para incluir, unir – inclusive os miscigenados, por amor ou por estupro – todos que têm sua origem ancestral em África.

O antropólogo Darcy Ribeiro concebeu a expressão para identificar negros e mulatos em uma época em que era cultivada a vergonha de suas origens – escravizados, com um passado de humilhações e sofrimentos, além dos estereótipos associados a mazelas sociais, como pobreza, criminalidade, bestialidade.

Assumir-se negro no Brasil sempre foi muito difícil. E ainda hoje impera uma ideologia do branqueamento, um padrão branco-europeu estético e cultural, um naturalizado não ver as pessoas negras.

Nada mudou. Mudamos nós. Sabemos quem somos, nossas origens, nossa excelência. Prós e contras próprios de seres humanos. Mas precisamos ficar mais atentos. O racismo estrutural é como uma chuva e, muitas vezes, nos molha também e impede uma visão nítida dos fatos.

O artigo Brasil e Estados Unidos, o racismo nosso de cada dia também aborda a questão do colorismo e como o não nos reconhecermos como negros fortalece o racismo estrutural.

Elite de mestiços?!

Somos humanos. Tão humanos que o Haiti, única colônia a conquistar a própria independência, reproduziu o que podemos chamar de ‘eugenismo negro’, a partir de um regime de castas que passava pelo quesito cor, com abuso pelos negros de pele clara.

Em outras palavras, nós contra nós.

Antes da independência, a pirâmide de poder, mantinha, no topo, os colonos brancos – cerca de 40 mil franceses; no intermediário, os negros e mestiços livres, que tendiam a ser educados e ter formação militar ou em administração agrícola – e, na base, a maioria de africanos, numa proporção de dez para um em relação aos demais.

Com a revolução vitoriosa, acabou o colonialismo no Haiti. Mas não o sistema de castas, cultivado durante o regime escravocrata. A liberdade e a independência, uma vez conquistadas, apenas fizeram o poder mudar de mãos. 

No topo da pirâmide, uma elite formada pelos mestiços. E, apesar de formarem a maioria da população, as pessoas trazidas à força do continente africano nem seus herdeiros tinham direito à alfabetização. 

No final, negros de todos os tons de pele tiveram de pagar e pagam, até hoje, pela liberdade conquistada e pelas vidas perdidas durante a revolução.

O Haiti é o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo.

Letramento racial

Escravizados, colonizados ainda, acabamos por incorporar no nosso vocabulário expressões e falas racistas – como “saber o nosso lugar” – e ofensivas, sobre nós mesmos – cabrita, mulato, mulata, exótico, exótica, da cor do pecado…

“Termos de nomenclatura animal – como ‘mestiço’, ‘mestiça’, ‘mulato’, ‘mulata’, ‘cabrito’, ‘cabrita’… – foram altamente romantizados durante o período de colonização, em particular na língua portuguesa… Esta romantização (…) transforma as relações de poder e abuso sexual muita vezs praticadas contra a mulher negra, em gloriosas conquistas sexuais, que resultam num novo corpo exótico e ainda mais desejável. Além disso, criaram uma hierarquização dentro da negritude, que serve à construção da branquitude como a condição humana ideal (…) Mestiço tem sua origem na reprodução canina, para definir o cruzamento de duas raças diferentes (…) Mulato é palavra originalmente usada para definir o cruzamento entre o cavalo e uma mula, que dá origem a um terceiro animal considerado impuro e inferior…”

(Do livro Memórias da Plantação, de Grada Kilomba, página 19)

Quando negros e negras dizem que negros e negras não se gostam, não se amam, alimentam o separatismo, o desamor entre nós.

Quando disputamos sobre quem sofre mais: se pretas de pele clara, consideradas ideais para a cama, ou de pele escura, perfeitas na cozinha, somos nós mulheres pretas quem perdemos.

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Fontes: Livro Memórias da Plantação, de Grada Kilomba; Secretaria de Educação- Goiania, Mundo Educação, CNJ, Wikipédia-afrodescendente, podcast Mano a Mano

Escrito em 28/2/2023

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